Confira a matéria sobre a Lei Anticorrupção, de Gabriel Di Blasi, Conselheiro do IRELGOV.
Uma nova etapa nas relações entre empresas e entes públicos.
O Direito é um fenômeno social dinâmico. Isto significa que a dinâmica social influencia o ambiente jurídico, de forma a refletir a sociedade e seu pensamento. Assim, em um sistema republicano democrático como o do Brasil atualmente, é natural que os anseios da sociedade sejam espelhados não apenas na composição dos poderes eleitos, como também nas leis propostas e sancionadas.
A Constituição Brasileira de 1988, assim, completa em 2017, 29 anos, sendo muito jovem se comparada com, por exemplo, a Constituição dos EUA, em vigor desde a independência das 13 colônias britânicas, ainda que com diversos amendments. Desta feita, é natural que o país atravesse por um processo de amadurecimento de suas instituições, enfrentando crises de valores ético-morais que permeiam a política e as instituições da república – a própria emenda à constituição norte-americana que proíbe a escravidão é um exemplo de amadurecimento constitucional e social.
Neste passo, é um fato histórico que o Brasil atravessou, e ainda atravessa, momentos marcados por práticas corrupção endêmicas no sistema – o que a mídia costuma denominar de “escândalos”. Desde a promulgação da Constituição, a sociedade brasileira já tomou conhecimento, de vários casos de corrupção, como os “anões do orçamento”[1], o “Banestado”[2],os “sanguessugas” [3], o “mensalão”[4], a “operação lava jato[5]”, “Panama Papers”[6], além de outros.
Levando em consideração que estes e outros esquemas de corrupção envolvem representantes democraticamente eleitos pela sociedade que invariavelmente utilizam-se de dinheiro público e violam princípios basilares da república como a livre concorrência, a dignidade da pessoa humana e a própria boa-fé exigida de representantes do povo, é natural que a sociedade eventualmente se manifestasse a respeito dos sucessivos desmandos.
É neste contexto que se inserem as sucessivas e crescentes manifestações públicas em todo o Brasil nos últimos anos. Com efeito, a sociedade mostra, em diversas oportunidades, sua insatisfação com a classe política, exigindo de seus representantes parâmetros e comportamentos dignos. Talvez o momento mais marcante da última década no cenário nacional tenha sido as manifestações de 2013[7], que surgiu devido a uma insatisfação de aumento de passagens para transporte urbano e se seguiu de diversas outras, tornando-se assim uma “nova” forma de a sociedade expor suas preocupações e demandas, de todas as ordens do escopo político. Em um futuro próximo, nos livros de história, é possível que esta manifestação seja comparada ao movimento de “diretas já” em 1984.
Os efeitos das manifestações são sentidos nos órgãos de controle da administração pública. É seguro dizer que o ministério público e a força policial encontram motivações extras no apoio popular à prevenção e punição contra atos de corrupção. No estrito cumprimento de seus deveres funcionais, os membros destas instituições realizam importante contribuição para o alcance Justiça, o que também é verdade no que tange aos advogados e seu importante papel no tema.
Os fatos acima descritos são corroborados por uma pesquisa da entidade independente Transparência Internacional, que em estudo conduzido no ano de 2016 afirmou que a percepção da sociedade brasileira sobre a corrupção está posicionada em 79º lugar em um total de 179 países[8]. Esta posição, ainda segundo a entidade, melhorou com relação à mesma pesquisa em 2015 devido ao esforço de entidades independentes responsáveis pela aplicação da lei. [9]
Antes mesmo da paradigmática manifestação de 2013, já estava em tramitação o Projeto de Lei n° 6826/2010, que culminou na lei n° 12.846/2013, denominada Lei Anticorrupção. Esta lei, juntamente com sua regulamentação, estabelece importantes parâmetros que funcionam como propulsores para uma nova conduta ética nas relações entre os entes privados e o poder público, através da definição de atos de corrupção e a responsabilização dos agentes corruptores.
A Lei Anticorrupção e o macrossistema de combate à corrupção
Antes mesmo de começar a tramitação da lei anticorrupção, entretanto, o Brasil ratificou dois importantes tratados a respeito do tema: trata-se da Convenção Interamericana contra a Corrupção[10], adotada em Caracas em 1996 e posta em vigência no ordenamento jurídico com o Decreto n° 4.410/2002 e a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção[11], assinada pelo Brasil em 2003 e posta em vigência no ordenamento jurídico interno a partir do Decreto n° 5.687/2006.
Como se não fosse o bastante (e não é), durante três anos de duração da denominada “operação lava-jato”, o Ministério Público Federal – Curitiba estima possuir 159 pedidos de cooperação internacional para apurar dados relativos ao processo. Em âmbito interno, o mesmo órgão estima como já realizado 844 buscas e apreensões, 210 conduções coercitivas, 158 acordos de colaboração firmados, 10 acordos de leniência, 144 condenações, com relação ao mesmo “escândalo” [12].
Não só os marcos legais, mas principalmente os números mencionados demonstram a seriedade com a qual o tema é tratado pelo governo brasileiro, muito embora uma efetiva lei nacional que combata a corrupção somente tenha sido debatida e aprovada em 2013. Neste sentido, a Lei Anticorrupção inaugura no país uma mudança de paradigma, com um verdadeiro sistema de combate à corrupção e compliance, operando significativamente mudanças no cenário da interação entre o ente público e o ente privado, bem como na instrumentalização interna de empresas.
Assim, a lei anticorrupção elenca de maneira clara os atos lesivos à administração pública, que envolve, por exemplo, oferecer vantagem indevida direta ou indireta a agentes públicos, além de diversos atos atentatórios à licitação e contratos com a administração pública, entre outros. Ainda, em importante previsão, serão puníveis as pessoas jurídicas internacionais, além de atos praticados contra administração pública estrangeira – seguindo os passos de importantes legislações internacionais sobre o tema.
Em importante avanço, a Lei Anticorrupção opta por um sistema de responsabilização mista do ente privado: sofrerá uma responsabilização objetiva, ou seja, sem a aferição de culpa, a pessoa jurídica que praticar as condutas descritas como atos de corrupção; enquanto isso, poderá haver uma responsabilidade subjetiva de dirigentes ou administradores destas empresas por estes atos. Isto decorre de uma presunção relativa de que o alto escalão de uma empresa possivelmente tem ciência dos atos que ocorrem internamente na mesma, reforçado pelo fato de que negociações e tratativas com o poder público certamente envolvem medidas que demandam altíssimo investimento de pessoal, tempo e também capital investido em complexas análises do setor. Uma negociação de peso, muito provavelmente, é ou deveria ser analisada pela direção de uma empresa. Reforça-se, contudo, que será auferido o elemento da culpa na responsabilização das pessoas físicas, ou seja, caberá prova em contrário, o que não poderá ser dito da responsabilização das pessoas jurídicas.
De mais a mais, a Lei Anticorrupção adota duas formas independentes de se processar e eventualmente punir atos considerados lesivos à administração pública: pela via administrativa e pela via judicial. Esta forma dual de busca pela conduta ética e correção de condutas desviantes fortalece o sistema anticorrupção, uma vez que assegura que empresas estejam sujeitas a duas punições distintas caso desafiem o sistema – com efeito, as responsabilizações pela via administrativa e judicial são independentes entre si.
Merecem destaque as severas punições em ambas as vias de responsabilização. Enquanto a punição por via administrativa poderá ser uma multa entre 0,1% e 20% do faturamento bruto do último exercício anterior ao da instauração do processo administrativo, além da publicação extraordinária da sentença condenatória, a punição por via judicial pode incluir diversas medidas drásticas, como por exemplo a suspensão ou interdição parcial das atividades da empresa, entre outros. A Lei estabelece, ainda, que estas punições são independentes àquelas submetidas à lei de licitações e contratos e seu microssistema, o que sinaliza, em nossa opinião acertadamente, autêntico diálogo de fontes entre estes dois diplomas legais.
A Lei Anticorrupção cria, ainda, dois importantes cadastros: o Cadastro Nacional de Empresas Punidas – CNEP, e o Cadastro Nacional de Empresas Inidôneas e Suspensas – CEIS, ambos a cargo do poder executivo federal e atualizado periodicamente por entes da administração direta e indireta. Estes cadastros são de fundamental relevância para dar publicidade às sanções aplicadas pelos órgãos ou entidades dos três poderes, o que privilegia e dá elogiosos contornos ao princípio constitucional da transparência.
Quanto ao conteúdo registrado em cada um destes cadastros, a regulamentação da lei anticorrupção (Decreto n° 8.420/2.015) estabelece que, enquanto o CNEP abarcará as punições e demais disposições da lei anticorrupção, o CEIS conterá as punições aplicadas no âmbito de leis que compõem, justamente, o microssistema de licitações e contratos (a saber, o Regime Diferenciado de Contratações Públicas – RDC, o regime do Pregão e a própria Lei Geral de Licitações e Contratos).
É importante notar que esta disposição juntamente com a formulação de acordos internacionais interliga, invariavelmente, diversos dispositivos conexos. Podemos assim, sem sombra de dúvida, vislumbrar um macrossistema de combate à corrupção – uma tendência claramente mundial.
As Relações Governamentais e o Acordo de Leniência
A lei anticorrupção seguramente inaugura uma nova etapa nas relações entre empresas e entes públicos.
Esta conturbada relação, é bom que se diga, sempre existiu em uma república democrática. Em maior ou menor grau, a interação entre empresas e o setor público é instrumento fundamental para que se realize administração pública, a partir de reuniões preestabelecidas e, é preciso que se diga, todas publicadas por meio do diário oficial e da agenda oficial do ente público envolvido.
Representar interesses é legítimo e esperado, mas é preciso ter em conta padrões legais, transparentes, éticos e morais, para que não se incorra na prática de corrupção. É preciso, portanto, seguir rigorosamente a letra da lei, não procurando obter vantagens ilícitas, favorecimentos ilegais que comprometam tanto o empresário quanto o próprio poder público. É preciso ter em mente que um acordo deve beneficiar uma coletividade — por exemplo procurar uma redução ou isenção de determinado imposto devido a alguma operação para um determinado setor do comércio, e não para uma empresa específica. A influência exercida no governo — que tem o objetivo final de resultar em alguma lei que seja sempre em proveito da sociedade como um todo. [13]
Este cenário acabou por criar internamente nas empresas um setor especializado em compliance, composto por diversos profissionais, em sua maioria advogados, que atuem de forma a estruturar uma empresa para que esta siga todas as normas do sistema anticorrupção.
Outra atribuição comum deste setor é a elaboração de um Código de Conduta interno da empresa. Este sistema interno deve identificar, prevenir e, se preciso for, corrigir, padrões de conduta desviante no que tange à corrupção. Importante ressaltar que um Código Interno de condutas deve ser aplicado não apenas a trabalhadores da empresa, mas também do board gerencial e de direção – efetivamente do chão ao teto da fábrica. Da mesma forma, é recomendável que o Código seja aplicável a pessoas externas à corporação, como por exemplo empresas parceiras com quem se negocia (especialmente se for de maneira constante), fornecedores e até mesmo clientes. Com efeito, é óbvio que qualquer interação deve estar pautada pelos princípios da moralidade e legalidade, boa-fé e comportamento ético, e o melhor caminho para evitar qualquer questionamento futuro é que estes tratamentos estejam claramente dispostos em um Código Interno.
Ainda, este Código de Conduta não é apenas aconselhável, como também é obrigatório para a elaboração de um acordo de leniência no âmbito da Lei Anticorrupção. Trata-se de um acordo específico entre uma empresa que pratica atos de corrupção e a autoridade máxima de cada órgão ou entidade pública em que esta empresa se compromete a colaborar com a identificação de demais envolvidos na infração e entregue documentos e informações que comprovem o ilícito, resultando em uma minoração da penalidade da responsabilização administrativa, embora não exima a pessoa jurídica da obrigação de reparar o dano causado de forma integral. Além disso, a celebração de um acordo de Leniência permite à empresa ser novamente apta a receber incentivos governamentais, uma das penalidades da responsabilização judicial.
Uma medida provisória que complementava a Lei Anticorrupção exigia expressamente a presença de um código de conduta, mas, com o encerramento da vigência desta, a exigência acabou por desaparecer da lei. Apesar disso, a exigência de um Código de Conduta continua expresso no Decreto que regulamenta a Lei Anticorrupção, e por esta razão entendemos que sua presença ainda é obrigatória. Em caso de a empresa corruptora que celebra o acordo já ter um programa deste parâmetro, com uma aplicação eficaz, ainda é possível a redução da multa administrativa cominada na punição em processo de responsabilização administrativa.
Outro ponto que desapareceu com o encerramento da medida provisória foi uma participação, ainda que minoritária, do Ministério Público em conjunto com os órgãos de controle interno dos entes federativos no âmbito de acordos de leniência. Ocorre que os membros do poder legislativo nacional não chegaram a um consenso justamente a respeito da participação do MP nesta seara, o que culminou com o encerramento do prazo de vigência da medida provisória[14]. Não permitir mais controle desta ferramenta é um grave erro, pois impede que novos casos de corrupção ocorram no âmbito dos próprios acordos de leniência – fato este que pode vir a ser corrigido com a aprovação de Projetos de Lei que tratam sobre o assunto, nomeadamente, por exemplo, o PL 3636/2.015[15], que inclusive altera a falha de não prever a obrigatoriedade de um Código de Conduta no acordo de leniência na Lei Anticorrupção.
Cumpre fazer um importante esclarecimento a respeito do acordo de leniência. Trata-se de modalidade de acordo diversa da Colaboração Premiada (usualmente denominada Delação Premiada). A colaboração premiada não possui qualquer previsão na Lei Anticorrupção, sendo um instrumento de natureza eminentemente penal, que foi regulamentado amplamente na Lei de Organização Criminosa (Lei n° 12.850/2013). Na Colaboração Premiada, há uma presença obrigatória da figura do magistrado, enquanto o Acordo de Leniência, como visto, é uma figura eminentemente administrativa, em um acordo entre a pessoa jurídica e a autoridade máxima de cada órgão ou entidade pública, como visto. Curiosamente, percebemos a atuação do Estado em ambas as hipóteses, mas enquanto na Colaboração Premiada temos o Estado-Juiz, no Acordo de Leniência há a presença do Estado-Gestor.
É preciso, contudo, fazer importante adendo a respeito da celebração de acordos de leniência. Com efeito, a mídia vem relatando atualmente empresas que celebram este acordo de forma heroica, efetivamente colocando em um pedestal aquela que toma a iniciativa de formalizar um acordo no âmbito da lei anticorrupção. Este não deve ser de maneira alguma o tratamento destinado a estas empresas. Isto porque este acordo envolve admitir as práticas de atos contra a administração pública, lesando assim não apenas concorrentes como todo o sistema democrático ao qual o país se funda. Se o âmbito da Lei Anticorrupção é uma “caça às bruxas”, certamente a empresa que firma acordo não deixa de ser uma delas, talvez com um pouco mais de consciência ou com medo das punições, já que, uma vez cumprido o acordo, a lei prevê uma redução de até 2/3 da multa administrativa no âmbito da lei anticorrupção.
Conclusão
De uma maneira geral, a Lei Anticorrupção e o desenvolvimento de um sistema de combate à corrupção deram grandes passos nos últimos anos, sendo considerado assim uma ferramenta importante e eficaz contra essa pratica. Muitos destes avanços são frutos de uma primorosa atuação de órgãos independentes de controle do Estado, como o Ministério Público, em todos os entes da Federação.
Um dos grandes triunfos da lei talvez tenha sido alavancar um sistema de administração ética no âmbito interno das empresas. Com efeito, a criação de um Código de Conduta e sua efetiva aplicação transforma gradualmente o ambiente interno da empresa e suas tratativas com entes públicos mais transparentes, regradas por princípios como ética e boa-fé. É possível que esta transformação seja feita de forma lenta e gradual, mas a qualificação das equipes especializadas em compliance e relações governamentais demonstra que esta mudança veio para ficar.
Outro importante destaque é a elaboração de um importante instrumento jurídico como o acordo de leniência. A partir de acordos desta natureza, certamente novos casos de corrupção de entes públicos emergirão, dando a possibilidade de as instituições corrigirem as falhas decorrentes do exercício de relações governamentais antiéticas e espúrias que muitas vezes permeiam a democracia brasileira. É preciso, contudo, ter ciência que aquelas empresas que celebram acordo de leniência não deixam de ser consideradas corruptoras, devendo ser lembradas e retratadas como tal pela mídia e pela sociedade.
Gabriel Di Blasi – Conselheiro* do IRELGOV – Instituto de Relações Governamentais.
JOTA – Às claras
Publicado em 30/08/2017
*A opinião do autor não reflete necessariamente a posição do IRELGOV