Nos últimos 30 anos, aos trancos e barrancos, temos aperfeiçoado a nossa democracia. É certo que ainda estamos engatinhando, mas já conseguimos restaurar pacificamente os governos civis eleitos democraticamente – em todos os níveis; fizemos um novo pacto nacional, coroado pela Constituição de 1988; retiramos democraticamente um Presidente da República de seu posto; organizamos e fortalecemos instituições que robustecem nossa escolha democrática, como as várias agências reguladoras, os órgãos de controle e afins; aprofundamos a participação da população nas decisões políticas, através de conselhos de vários tipos e outros mecanismos; aprovamos leis que exigem mais responsabilidade e transparência por parte dos governantes, enfim: avançamos na consolidação de um Brasil mais democrático e participativo. Mas, para não exaurir o que ainda falta – Reforma Política, ou Reforma Representativa – como gosto de chamar, à frente – irei me deter em um ponto específico: a defesa de interesses, ponto central em democracias ditas consolidadas.
Se partirmos do pressuposto de que todos os grupos sociais – sindicatos patronais e de trabalhadores, movimentos sociais, associações, ONGs, e por aí vai – têm interesses com relação aos poderes públicos constituídos, e que cabe justamente à esses poderes fazer a mediação em busca do interesse público maior, garantido que as demandas particulares de um grupo não se sobreponham aos anseios e direitos da sociedade como um todo, vamos perceber que falta algo muito importante a ser debatido na sociedade brasileira: quais são as regras para que um grupo defenda seus interesses? Como se dá, na arena democrática brasileira, o duelo de ideias entre os grupos, tendo em vista uma mudança ou manutenção de uma determinada política pública? Em outras palavras, quais são as regras que todos devem seguir quando querem ou precisam defender seus interesses junto aos Poderes Executivos e Legislativos? Quais os limites das atividades de pressão, lobby ou advocacy em nosso País?
Há décadas se arrasta no Congresso projetos de lei a respeito do tema, sem que a maioria de nossos legisladores tenha se empenhado para que isso fosse esclarecido. É de se perguntar seriamente a quem serve a ausência de regras sobre a atividade do lobby no Brasil. Porque, se formos honestos intelectualmente, todos sabemos que os indivíduos e grupos têm seus interesses particulares e farão o que for possível para defende-los. É da democracia, é bom que assim seja. Mas interesses não mediados, interesses sem regras, só fazem bem à quem pode mais – e a quem pode ganhar mais com esse jogo nas sombras.
As atividades de pressão, costumeiramente relacionadas à meias, cuecas e bolsas recheadas de dinheiro, precisam vir à luz e ter regras claras, cristalinas, executáveis e auditáveis, para dizer o mínimo. Não faz bem à sociedade brasileira que essas atividades corriqueiras de um País livre e democrático sejam relegadas aos porões, como se o próprio ato de defender seus interesses seja confundido com a podridão da corrupção. É instigante notar como os meios de comunicação tratam corruptores de agentes públicos: são “lobistas”, claro! E os advogados corruptos que compram ou tentar comprar decisões de juízes, são o que? Lobistas? E o cidadão que suborna o agente público de trânsito é o que ? Lobista?
A lógica me leva a crer que são corruptos, todos. Um lobista que tenta comprar uma decisão política com dinheiro está sendo tudo, menos lobista. Assim como um advogado que tenta comprar uma decisão judicial está sendo corrupto – e não advogado, e um cidadão que tenta se safar de seus delitos subornado o agente público está sendo corrupto – e não cidadão.
É urgente – ainda mais tendo em vista as manifestações populares dos últimos anos exigindo mais representatividade e transparência nas decisões públicas – que discutamos, séria e maduramente, quais são as regras que organizam e limitam as atividades de defesa de interesse no Brasil. A criação do Instituto de Relações Governamentais, que pretende ser um polo irradiador das melhores práticas do tema, é auspicioso. Mas precisamos ir além: é absolutamente necessário trazer à luz essa discussão, criar um arco de alianças na sociedade capaz de construir mais esse pilar da nossa sociedade, de forma séria e célere, para que não joguemos nosso “bebê” democrático fora, junto com a água de corrupção que o rodeia – e que já poderia estar bem mais limpa, não fossem justamente os desejos obscuros de alguns poucos.
Sobre o autor
Leandro Machado, é bacharel em Ciência Política pela Universidade de Brasília, com cursos de especialização na George Washington University e Siracuse University/ABERJE. Foi executivo de Relações Governamentais de grandes empresas, como Shell, IBM e Natura. É um dos fundadores da Union For Ethical Biotrade, sediada em Genebra, além de ser um dos fundadores e membro do conselho da Rede de Ação Política Pela Sustentabilidade – RAPS, e fundador da CAUSE, primeira agência de issues advocacy do país.
Em 2015, foi nomeado Young Global Leader pelo Fórum Econômico Mundial.
A CAUSE é sócio-fundadora do IRELGOV.