A maneira como vai se desenrolar a crise política que assola o Brasil irá determinar o futuro das relações entre governos e empresas. Independentemente do desfecho da crise, não é possível imaginar um país com as dimensões e complexidade como o Brasil em que as empresas não se relacionem com o Estado. É necessário se discutir, com a participação de toda sociedade, sob quais bases e regras esses diálogos se darão no futuro. Esse foi um dos principais pontos discutidos no evento “O futuro das relações entre empresas e governos no Brasil”, promovido pelo Centro de Estudos em Competitividade Internacional da Escola de Administração de Empresas de São Paulo (EAESP) da Fundação Getúlio Vargas (FGV).
As formas de relacionamento entre entidades privadas e governos passa por mudanças na legislação, como a regulamentação do lobby, mas também por transformações mais profundas no ambiente político e empresarial, com discussões sobre reforma política e mudança na cultura dentro das corporações. Em decorrência da Lei Anticorrupção e da conjuntura política já se percebe mudanças dentro dos ambientes corporativos, com maior preocupação das empresas com a transparência e compliance. “A demanda por programas de integridade não pode ser uma moda passageira, apenas um item da lista para que ela não esteja fora do mercado, mas deve ser uma mudança de cultura”, afirmou Paulo Dantas, conselheiro do IRELGOV que participou do debate.
O diálogo entre empresas e governos passa, necessariamente, por pessoas, os profissionais de relações governamentais e institucionais. O desafio do setor é criar uma narrativa que reforce a legitimidade e o caráter democrático e constitucional do lobby, desvinculando as atividades de defesa de interesses dos crimes envolvendo corrupção e tráfico de influência. O maior problema a ser enfrentado é a visão negativa que permeia a sociedade sobre a atividade do lobby. “Criar uma agenda positiva desse profissional é muito difícil”, reconheceu Paulo Dantas.
A visão negativa das relações entre o setor privado e o poder foi sendo construída ao logo de toda a história do Brasil, explica Paulo Nassar, diretor-presidente da Associação Brasileira de Comunicação Empresarial (Aberje). Nassar fez uma proposição que causou certo desconforto entre os representantes das entidades de relações institucionais e governamentais. Segundo o presidente da Aberje, as empresas deveriam, de certa forma, fazer um mea culpa e adotar uma narrativa de reparação. “As áreas de relações governamentais precisam entender que devem puxar essa narrativa de reparação. As empresas que quiserem permanecer precisam reparar a sociedade do dano que cometeram”, afirmou Nassar.
Guilherme Cunha Costa, presidente da Associação Brasileira de Relações Institucionais e Governamentais (Abrig), rebateu e defendeu que profissionais e empresas não podem reparar algo do qual não teriam participado nem tiveram nenhum tipo de responsabilidade. “Não se pode reparar aquilo que a gente não se enxerga”, afirmou. Nassar esclareceu que a sua sugestão não se referia a situações específicas, personalizando o discurso. Seria necessário criar uma meta narrativa que reforce o caráter ético e constitucional das relações governamentais, contrapondo-se à narrativa que está na cabeça da população que é de relações “não públicas”, como aconteceu nos Estados Unidos, por exemplo. “A sociedade norte americana mostrou que aquilo que a gente chama de lobby é instrumento da democracia”, explicou.
O futuro das relações governamentais precisa ser discutido de forma ampla. Um dos desafios do IRELGOV, apresentou Paulo Dantas, é trazer luz à atuação dos profissionais, reforçando a transparência e ética, mostrando que a função é fundamental para desenvolvimento da atividade das empresas. Entretanto, Dantas reconheceu que a reputação dos profissionais está sendo questionada devido a denúncias de corrupção envolvendo pessoas que atuavam na área.
A regulamentação do lobby seria umas das maneiras de dar maior transparência nas relações público-privadas e para que a profissão seja mais respeitada. “A regulamentação é positiva e tem que permitir que essa atividade promova o diálogo entre sociedade e autoridades para que essas políticas públicas venham a ser um bem social”, afirmou Guilherme Cunha Costa, da Abrig. “A partir da regulamentação da profissão, os controles exercidos por ela devem ser efetivos. Por isso é importante que a lei seja discutida no detalhe”, analisou Paulo Dantas, do IRELGOV.
As mudanças nas empresas precisariam ser acompanhadas por mudanças no sistema político foi uma conclusão unânime entre os debatedores. É preciso uma agenda mínima, afirmou Milton Seligman, professor do Insper. Além da regulamentação do lobby, esta agenda incluiria também o fim das coligações proporcionais e a adoção de cláusulas de barreira para os partidos políticos, segundo Seligman.
O professor Marco Antonio Teixeira, da Fundação Getúlio Vargas, alerta sobre a importância da conexão da sociedade com o sistema representativo. “Projetos não saem da gaveta sem pressão popular”, afirmou. Segundo Teixeira, daqui para frente deve-se investir na cobrança de transparência e na compreensão e entendimento das informações, para então cobrar responsabilização nos casos de desvios. “Em um ambiente de transparência no qual as informações circulam muito rapidamente, para quem age de maneira nociva ao interesse público, o custo político pode ser muito alto”, resume Teixeira.
Desafios futuros
Outro ponto levantado no debate sobre o futuro das relações governamentais foram os desafios que a revolução tecnológica irá impor às autoridades e aos representantes das empresas. Milton Seligman, do Insper, afirma que o sistema envelheceu e os legisladores e o poder executivo já têm dificuldade de enfrentar essa nova realidade. Uma situação bastante atual é o caso do Uber, que até agora não teve uma regulamentação definitiva, pois não houve consenso entre as diversas esferas do poder público. “Não temos capacidade atual para dar respostas. São situações que exigem ambientes de debates sobre normas e regulações que é completamente diferente da bagunça e balbúrdia que vivemos hoje”, afirmou Seligman.
A nova indústria, baseada em uma infraestrutura digital, irá impactar profundamente a economia. Essa nova realidade irá exigir maior especialização dos profissionais de relações governamentais. Um exemplo é o caso das impressoras 3D, que farão com que as fábricas sejam móveis, modificando as relações de trabalho. Seligman apresentou outra situação iminente ainda mais complexa. Segundo o professor, em 2025, nos Estados Unidos, cerca de 10% da frota de veículos não terá motorista e 5% das cidades não terá semáforos, pois o trânsito será controlado de forma eletrônica. Em caso de acidente, quais seriam as decorrências jurídicas sobre as responsabilidades?
Essa situação parece estar muito distante, mas ela deverá se concretizar daqui a dois mandatos presidenciais. Governos, empresas e sociedade terão que se capacitar, muito rapidamente, para encontrar repostas para essas novas realidades. No Brasil, essas discussões deverão ser mais difíceis, segundo Seligman, pois as questões mais importantes não serão tecnológicas, mas os limites normativos e éticos. “A maior dificuldade é onde estamos mais fracos”, referindo-se às questões éticas e institucionais.
Paulo Dantas, do IRELGOV, deu um exemplo sobre o impacto da tecnologia nas relações governamentais atuais. Decisões do país mais poderoso do mundo, os Estados Unidos, são tomadas pelo seu presidente por meio do Twitter, que passa a ter influência na política mundial. “Redes sociais não deixam de ser relações governamentais. Se não nos adaptarmos, o tempo vai passar”, alertou Dantas.