O “Legado Maia” em meio à tempestade política e pandêmica
Por Jean Castro e Leonardo Barreto*
A política é feita de instituições e de pessoas. Isso se sabe desde Maquiavel, que definiu que uma parte da vida o indivíduo não controla (fortuna), mas uma outra, sim (virtú). O príncipe habilidoso combina essas duas coisas, é aquele que sabe lidar com o destino de tal modo a revertê-lo a seu favor. Por isso, nunca se deve esquecer o papel central que a liderança pessoal tem, mesmo em sociedades altamente engessadas e reguladas, como é a brasileira.
Funciona mais ou menos assim, para lembrar outro clássico, o sociólogo francês Pierre Bourdieu: toda dimensão da vida é um campo de forças constituído historicamente, que possui suas regras, estruturas de incentivos e constrangimentos que definem quais recursos valorizam mais ou menos (dão ou tiram poder) os atores que disputam espaço ali. Melhor sucedido é aquele que conhece bem o tabuleiro, que tem jogo na pele e consegue traduzir esse saber em ação.
Toda essa introdução é necessária para desenvolver um olhar sobre Rodrigo Maia e seu papel na história recente do país.
Durante seu período à frente da Câmara dos Deputados, iniciado após a renúncia do ex-deputado Eduardo Cunha, em julho de 2016, Maia passou por duas crises presidenciais (Michel Temer e Jair Bolsonaro), teve papel fundamental para a aprovação de reformas estruturais (trabalhista, fiscal e previdenciária) e enfrentou a maior crise sanitária da história do mundo que, entre outras coisas, exigiu grandes obras de engenharia política, a saber, a pacificação federativa, o auxílio emergencial, marco do saneamento e o orçamento de guerra, este último responsável por dar credibilidade fiscal no longo prazo.
No Brasil, é sempre arriscado dizer que nenhum presidente de poder Legislativo tenha tido tantos desafios. Mas as situações que Maia teve que enfrentar antes mesmo de completar 50 anos, feitos apenas no último mês de junho, indicam que sua passagem pela história não será, nem de longe, trivial.
Não era raro escutar em 2016 que Maia tinha sido promovido antes do tempo à condição de liderança nacional. Mas, olhando à distância, pode-se compreender que trata-se de um evento totalmente compatível com o “espírito do tempo” vivido no Brasil, marcado por uma desarticulação profunda das forças tradicionais, à esquerda e à direita, que ajuda explicar a própria eleição de um outsider à presidência da República e o fato de que, em 2019, os dois presidentes do Congresso Nacional possuíam menos de 50 anos de vida.
Pelos critérios de Bourdieu, no entanto, ser jovem não significa ser novato no campo político. E, talvez por um lance de sorte do país (e dele próprio), Maia é detentor de um recurso simbólico que se tornou escasso desde a posse de Bolsonaro, qual seja, a capacidade de promover consensos.
Pode parecer estranho falar isso em 2020, mas a natureza da política brasileira, que é anterior até à democracia, é consensual, sem dividir muito a história entre vencedores nem derrotados absolutos. O tipo ideal do líder no imaginário das pessoas é do conciliador, do sedutor, do pacificador. Fernando Henrique Cardoso disse que sua inspiração era Campos Salles, que botou fim à instabilidade gerada pela tensão entre poder federal e governadores estaduais criando a política do “Café com Leite”. Getúlio Vargas estimulou a fundação de dois partidos, o PSD, das elites rurais, e o PTB, dos trabalhadores fabris e urbanos. Com o empresário José Alencar, Lula quis simbolizar a união entre capital e trabalho.
Jair Bolsonaro tem outro estilo. E sua decisão de manter o discurso anti-establishment após empossado, levou o sistema brasileiro a uma situação de impasse poucos meses após sua posse. Em abril, uma pesquisa parlamentar mostrou que a nota média dada por deputados federais para a relação entre o governo e o Congresso era 3,6. Menor do que a obtida pela ex-presidente Dilma Rousseff no ano do seu impeachment (3,8)!
A decisão de não formar uma coalizão e de manter um clima de confronto deram novos contornos à política brasileira, exigindo uma rápida adaptação das instituições, sob o risco de se caminhar para uma nova ruptura. Essa foi a circunstância dada pelo destino a Maia, que precisou convencer a Câmara a funcionar em uma frequência diferente enquanto enfrentava ataques pesados da militância radical bolsonarista nas redes sociais.
A aprovação da reforma da Previdência é o feito mais lembrado da liderança de Maia no primeiro ano de governo. Mas houve outros, mais sutis, que envolveram a construção de pontes diretas entre alguns setores do poder Executivo e o Legislativo, sem passarem necessariamente pelo Planalto.
Maia se tornou uma espécie de fiador da estabilidade política. Uma história real ilustra bem o que isso significa. Um investidor estrangeiro ligou para seu consultor em Brasília perguntando qual era o tamanho da base de apoio no Congresso. Desavisado, o cientista político disse que Bolsonaro só tinha o PSL e “olhe lá”. O gringo, no entanto, o corrigiu e refez a pergunta: “você não me entendeu. Eu quero saber o tamanho da base que o Rodrigo Maia tem”.
A importância do presidente da Câmara é proporcional à desarticulação do governo. Ele é a chave para a criação de uma nova gestão, quando aceita um projeto de impeachment, ou o fiador da sua estabilização, como ocorreu no governo Temer após denúncia feita pelo Ministério Público Federal, que levou a Câmara a votar em duas oportunidades, sob a gestão de Maia, pelo afastamento ou não do ex-presidente.
A crise do coronavírus e o embate feroz entre o presidente Bolsonaro e dois dos seus ministros mais populares, Sérgio Moro e Luiz Henrique Mandetta, além de conflitos com governadores e a imprensa não demorou para levar até à mesa de Maia diversos pedidos de impeachment. E, aqui, entra a parcela de liderança que é pessoal e intransferível.
Quando as pesquisas de popularidade se tornam inconclusivas sobre a permanência ou não de um presidente, é a Câmara que decide o que vai acontecer. Em um determinado momento, Maia poderia ter escolhido um caminho de descontinuidade que, em um contexto de crise, mas com o Congresso liberando generosa ajuda emergencial para as pessoas, poderia ter construído um ambiente desfavorável para Bolsonaro. Optou por congelar o movimento e dar tempo para o governo ensaiar uma descompressão bem sucedida, até agora.
Maia elegeu como prioridade a reforma tributária, um projeto gestado sem a participação do poder Executivo. Ele tenta usar a forças dos estados, padrinhos da PEC 45, para coroar sua gestão com uma mudança que atacaria o principal fator do custo Brasil e que é tentada pelo menos desde o final da década de 90. No entanto, esse não será seu último desafio.
O estilo de decisão de Maia não agrada a todos. O presidente da Câmara tem por filosofia que a Casa deve ser gerida com a participação e distribuição de recursos de poder entre a maior quantidade de atores possíveis, inclusive da oposição sistemática. Do lado de fora do Congresso Nacional, apoiadores bolsonaristas não entendem como Maia pôde dar a relatoria de MPs importantes para deputados do PCdoB ou mesmo do PT, por exemplo. Mesmo entre deputados, outros líderes de agremiações do centro não percebem essa relação com a esquerda, que inclui lhe dar algum poder de veto sobre determinados assuntos, de forma positiva.
O consensualismo cultivado por Maia, que lhe deu tanta capacidade de gerir ânimos em momentos decisivos, é um dos fatores pelos quais ele é criticado e cobrado. Não deve surpreender ninguém se um dos candidatos à sucessão prometer exatamente reduzir o tom conciliador e tentar imprimir um ritmo mais acelerado, impositivo e majoritário às votações.
No final, Maia poderá ser lembrando como um grande gestor de crises. Um negociador habilidoso que, mesmo sem recursos à mão para construir maiorias, como seria em um parlamentarismo, ajudou a aprovar reformas importantes em ambientes conturbados e elevou o papel da presidência da Câmara dos Deputados a um nível que fez com que o país experimentasse um semi-presidencialismo de fato (não de direito), no qual os chefes do Executivo e do Legislativo combinam em pé de igualdade qual deve ser a agenda parlamentar.
Maia teve erros. O principal deles talvez tenha sido na construção do auxílio emergencial para estados e municípios, que teve que ser modulado, depois, pelo Senado, embora o conceito da ajuda tenha sido mantido. Mas, para a história, ou para o povo, como diria Maquiavel, o que importa não são os caminhos, mas os resultados. O sociólogo alemão Max Weber definiu essa lógica como ética de responsabilidade, quando o político responde ao tribunal das biografias pelo conjunto da sua obra.
Rodrigo Maia não apenas trabalhou circunstâncias complicadas em favor de uma estabilidade que é preciosa como, com isso, redefiniu as instituições, ampliando a importância do parlamento. Valorizou o seu próprio nome e papel no futuro. Tanto que é difícil imaginá-lo como um simples deputado a partir de 2021.
Jean Castro é fundador e CEO da Vector Relações Governamentais.
Leonardo Barreto é doutor em Ciência Política pela Universidade de Brasília (UnB) e Diretor-Chefe da Vector Análise.