A relevância da tecnologia durante a pandemia e o futuro para o profissional de Relações Governamentais
Por José Luiz Pimenta Junior*
A atividade de representação de interesses, a despeito da miríade de meios, ferramentas e estratégias disponíveis, pressupõe, necessariamente, a transmissão de algum tipo de mensagem. Essa transmissão envolve um ou vários emissores e receptores, que interagem entre si de acordo com temáticas transversais e/ou específicas. Esses conceitos e dinâmicas pareciam estar, de certa forma, consolidados no mundo das relações governamentais, até a ocorrência da pandemia provocada pelo novo coronavírus. Não somente a transmissão das mensagens passou a ser mais complexa, como a dinâmica de interação entre as esferas pública e privada sofreu diversas transformações impulsionadas pelas novas e prementes tecnologias de produção, transporte, comercialização e, sobretudo, comunicação.
Diante desse contexto, o objetivo principal do debate promovido pelo IrelGov, no sexto episódio da série COVID-19 e seus impactos para as relações governamentais, consiste justamente na tentativa de compreensão do papel central da tecnologia, vis-à-vis os diversos modelos atuais de negócio, durante a pandemia que ora nos assola.
Gabriel Di Blasi, dando início ao encontro, destaca os efeitos do isolamento social e como essa nova adaptação à realidade tem afetado as relações humanas em geral. Em suma, setores como saúde, educação, e-commerce, entre outros, têm passado por verdadeiras mudanças estruturais e, ao que parece, com efeitos duradouros. O papel da tecnologia, como lembra Di Blasi, é crucial no curso dessas transformações, sobretudo por seu caráter transversal de atuação.
Com o objetivo de ilustrar como a tecnologia e a interação on-line tem afetado o ambiente político nacional durante a COVID-19, Manoel Fernandes elucida o conceito de “Ecossistema da política digital” no Brasil e sua relação com a COVID-19. Segundo o especialista, a análise dos perfis de senadores, deputados federais e estaduais, governadores, prefeitos e vereadores de capitais, entre os dias 1 de março e 30 de abril de 2020, observa uma produção de 570 mil posts nos perfis dessas autoridades, os quais, por sua vez, geraram 534 milhões de interações (curtidas, compartilhamentos e comentários) durante o período. Cumpre destacar, no entanto, que cerca de um terço dessas interações refere-se à COVID-19. Essa dinâmica permite constatar que o corpo político, dessa forma, passou a utilizar a pandemia para diversos fins, como geração de informação, ataques recíprocos, promoção da imagem, ações de engajamento e divulgação de iniciativas de combate à doença. De acordo com Manoel, esse ecossistema tende a se acentuar e fazer com que não somente políticos, mas diversos profissionais de relações governamentais, tornem-se, gradualmente, influenciadores digitais de seus temas, sobretudo com o propósito de influenciar e aumentar o debate público-privado em torno deles.
Andriei Gutierrez, por sua vez, dá continuidade ao debate destacando os principais eixos constituintes da chamada “mentalidade tecnológica”, e a necessidade de “estarmos confortáveis em sairmos de nossa zona de conforto”, desde aquilo que tange a atividades rotineiras até em questões mais estratégicas. A convivência com o constante questionamento do nosso modelo de trabalho atualmente é um dos pontos centrais da análise de Andriei. A utilização de novas ferramentas, iniciativas de empoderamento da equipe, modelos mais integrados de gestão, entre outras ações, fazem parte do novo “pensar tecnológico” e da efetiva funcionalidade do papel do profissional de relações governamentais. Andriei ainda destaca o papel social, no longo prazo, das dinâmicas tecnológicas de interação, bem como seu potencial de influência sobre o próprio substrato da sociedade em temas como: conectividade, desigualdade, educação, cidadania, redução da burocracia e corrupção, novas técnicas produtivas, entre outros.
É consenso entre os participantes, todavia, que a pandemia catalisou o processo de transformação digital em diversos aspectos. No caso das votações do Congresso Nacional, por exemplo, o meio digital permitiu que não houvesse uma paralisação total das atividades legislativas, pois as autoridades podem estar presentes às sessões, mesmo que de forma virtual – algo totalmente impensável há décadas atrás. Aliado a isso, os novos aplicativos e ferramentas de atuação passaram a influenciar e aperfeiçoar o papel do profissional de RIG, que terá, por sua vez, que se adaptar cada vez mais à nova realidade da profissão.
- Novas regulamentações sobre tecnologias digitais em decorrência da pandemia: Andriei destaca que vivemos atualmente em uma sociedade em transição da era industrial para a era digital, com novas dinâmicas produtivas e comerciais que vão impactar diretamente o processo de criação de leis e aperfeiçoamento do arcabouço legal existente. Há, nesse sentido, o timing dos legisladores quanto à reflexão e ampliação de políticas públicas que reflitam essa realidade digital. Ele destaca, como exemplo, a Política Nacional de Segurança Cibernética, instituída em 2018; e as autorizações para o funcionamento da telemedicina, em decorrência da pandemia. Manoel, por sua vez, observa que as discussões em torno desse tipo de regulação perpassam uma dinâmica que deva combinar dados e pessoas; e entende como necessária a conscientização das autoridades públicas em torno de assuntos da realidade digital cada vez mais eminentes para a sociedade.
- Incorporação de inteligência artificial (I.A) na área de RelGov e outras ferramentas de análise de dados: Andriei destaca a existência de uma série de ferramentas de I.A que passaram a permitir análises mais robustas das diversas categorias de propostas normativas, bem como do monitoramento de redes sociais. Ele adverte, todavia, que apesar dos avanços na área, a estratégia de gestão e engajamento de stakeholders ainda está amplamente ligada ao conhecimento e às competências do gestor e da gestora da área. Manoel afirma que uma análise de qualidade decorre necessariamente de um ambiente com plena liberdade de acesso à informação e que a tecnologia deve ser vista como uma ferramenta essencial para uma análise qualificada do profissional de relações governamentais.
Especificamente em relação à Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), Andriei destaca a necessidade de o tratamento de dados estar sempre aliado a boas práticas, e diz que, mesmo com a lei ainda não em vigor, diversas empresas já buscam atuar em consonância com suas diretrizes. Manoel diz que seu trabalho sempre busca abranger dados abertos e públicos e afirma que o diferencial competitivo de uma empresa em trabalhar com dados disponíveis está na sua capacidade analítica.
- Relacionamento Institucional Digital e Advocacy Online: Tendo em vista a mudança brusca da interação com representantes do setor público, Manoel destaca a possibilidade de apresentação de pleitos diretamente na página dos Deputados e Senadores, tendo em vista que as empresas têm o direito legítimo de defender seus interesses assim como as organizações da sociedade civil. Gabriel destaca que essa interação digital confere muito mais transparência ao processo e que a nova dinâmica está voltada a ações de aprendizado contínuo. Andriei observa que, tendo em vista um país de dimensões continentais como o Brasil, faz todo sentido a ampliação e aperfeiçoamento de instâncias digitais de interação entre autoridades públicas, como no caso das sessões do Congresso Nacional.
Após discorrer sobre a importância do Movimento Brasil País Digital, iniciativa que conta com 14 entidades e tem como objetivo promover a discussão sobre como o uso de dados pode melhorar a vida das pessoas e tornar o país mais digital e menos desigual, Andriei explica sobre a importância da tecnologia 5G e como sua consolidação no país pode aumentar o nível de conectividade entre as pessoas e também aperfeiçoar o escopo da Internet das Coisas (Internet of Things).
- Desburocratização, Gestão Digital e E-eleições: Manoel avalia o processo eleitoral digital como algo extremamente incipiente, porém destaca que as eleições de 2020 devem contar com a consolidação de algumas tendências, como ausência de palanques, “santinhos”, campanhas de rua, etc. Em sua visão, candidatos que conseguirem trabalhar com ferramentas digitais de maneira efetiva deverão ter maior vantagem competitiva sobre seus concorrentes. Em complemento, Andriei destaca as eventuais dificuldades que o modelo de democracia representativa atual pode vir a enfrentar por conta do surgimento de novas tecnologias, de um eventual cenário eleitoral digital e de processos de participação popular mais ativos e transparentes.
Em suma, o rico debate pode nos mostrar que, na visão dos participantes, é irreversível o processo de aceleração tecnológica e o surgimento de novas ferramentas que nos apresentam a uma realidade cada vez mais digital. Nesse sentido, fica claro que sociedade e poder público devem trabalhar conjuntamente em prol de um projeto de país voltado à ampliação da chamada cidadania digital, promovendo mais inserção e oportunidades às pessoas por meio da interface online; bem como junto ao setor produtivo, com vistas ao incremento da competitividade sistêmica e da inserção de setores da nossa economia nas cadeias produtivas globais, atualmente muito mais digitais. Para o profissional de relações governamentais, torna-se latente a necessidade de um constante aprendizado sobre como operar junto ao meio digital, seja para a interação direta entre as esferas pública e privada, ou como forma de aperfeiçoar estratégias de advocacy, gestão temática e rede de stakeholders.
*José Luiz Pimenta Junior é Doutor e Mestre em Relações Internacionais pela USP, Especialista em Negociações Econômicas Internacionais pelo Programa San Tiago Dantas (PUC, UNESP e UNICAMP) e Bacharel em Relações Internacionais pela UNESP. É professor de Graduação e Pós-Graduação em Negócios Internacionais da ESPM, da Pós-Graduação em Comércio Internacional da FECAP e do MBA em Relações Internacionais da Universidade Anhembi Morumbi. É Gerente Executivo de Relações Governamentais da AMCHAM