Máscaras cobrindo os rostos. Ruas completamente desertas. Ameaça mortal – e invisível – pairando sobre a humanidade. Um roteiro de ficção científica que durou dois longos anos – e que promoveu profundas mudanças em diversas esferas da sociedade, das relações entre as pessoas às formas de trabalho. Como o lobby, atividade intensa em interação social, foi afetado? De que forma se adaptou?
Para Paula Bernardes, sócia da APLV consultoria, o primeiro impacto sentido foi causado pela imprevisibilidade. “A pandemia trouxe consequências como crise econômica, de abastecimento e, aqui no Brasil, ainda foi seguida por eleições. “Isso gerou uma grande instabilidade e uma dificuldade de planejamento para 2023 das atividades de lobby e advocacy. Também houve impactos do ponto de vista da atividade direta. Nas reuniões online, perde-se um pouco da percepção, o que dificulta um pouco mais a negociação. Por outro lado, houve redução de custos e gasto de tempo com viagens para discutir temas técnicos, o que pode perfeitamente ser feito de forma virtual.”
De acordo com a pesquisadora da Fundação Getúlio Vargas, Giuliana Franco, que atua em relações governamentais há quase duas décadas, a pandemia apresentou um cenário inicialmente instável, no qual os lobistas tiveram que se adaptar a novas formas de atuação. “Como dizia Aristóteles, ‘o homem é um animal político’, e os profissionais de RelGov são uma das melhores representações desta frase. Imagine ficar trancado em casa? A solução foi recorrer à tecnologia, com novas ferramentas de acompanhamento e mais agrupamento virtual de pessoas e suas causas”.
“Esses novos instrumentos proporcionaram representatividade geográfica e deram oportunidade a equipes menores, que não têm muitos recursos para viagens”, afirma a head de Assuntos Corporativos e Sustentabilidade América Latina/ Sanofi Consumer Health, Sarah Bonadio. Segundo ela, isso também trouxe mais transparência, com encontros marcados e devidamente registrados, e agenda clara.
Frederico Amaral de Oliveira, CEO e fundador da Sigalei, não acredita em mudanças drásticas no lobby como o conhecemos hoje e sim em um aumento na velocidade do jogo devido à incorporação dessas novas ferramentas. “No pós-pandemia, muitas decisões passaram para o mundo digital, o que melhorou a qualidade da informação, mas também aumentou muito a quantidade.
Novas ferramentas precisaram ser incorporadas para dar conta deste novo desafio como, por exemplo, instrumentos de análise de dados que ajudam a tomar decisões mais acertadas.”
Com o arrefecimento da pandemia, a opção pelo home office, obrigatório até então, começou a ser flexibilizada. No entanto, muitas empresas adotaram um regime híbrido, com profissionais dividindo as jornadas de trabalho entre o ambiente doméstico e os escritórios.
Giuliana Franco acredita que o lobista incorporou em seu dia a dia o home office e ampliou produtos e serviços de backoffice – atividades de análise e inteligência – sem ir a campo. “Tudo isso foi viabilizado por instrumentos como o Whatsapp – a gente vê que fazer relgov por mensagens é a realidade de todos.”
Para o CEO do Sigalei, essa divisão veio para ficar. “Mas quem percebe mais essa diferença são os profissionais que atuam no
backoffice. Para quem trabalha fazendo atuação talvez não mude muita coisa, pois a vida de relgov é estar em locomoção”.
Sarah Bonadio acredita muito no regime híbrido, pela flexibilidade que proporciona. Se o contato pessoal, olho no olho, ajuda na criação de confiança no relacionamento, o home office nos direciona para diálogos transparentes, e maior equilíbrio com funções pessoais e aproveitamento do tempo de deslocamento”.
Paula Bernardes é taxativa: “No meu caso está quase 100% homeoffice, com uma ou outra reunião presencial. O home office veio para ficar. As pessoas distribuem melhor o tempo e conseguem se organizar.”
O melhor aproveitamento do tempo foi uma das vantagens que o home office trouxe para a atividade de relgov.
Julia Vianna, especialista na área de Relações Governamentais da Shell Brasil, explica que trabalhar em casa trouxe economia para as empresas, eficiência, ao economizar tempo de deslocamento e, em muitos casos, conforto.
“É importante diferenciar home office de trabalho remoto. Quando falamos em regime híbrido, não significa necessariamente estar no escritório ou em casa, mas estar em qualquer lugar.
Priorizar entregas, e não uma folha de ponto a ser registrada. Hoje, vou ao escritório uma a duas vezes por semana, em média, mas isso depende muito da agenda: se há visitante externos no escritório e se faz sentido ir ao escritório sozinha para passar o dia em videochamadas.”
Para a pesquisadora da Fundação Getúlio Vargas, Giuliana Franco, o home office deixou a profissão mais dinâmica e busca garantir maior acesso e transparência, especialmente no acompanhamento de atividades nos estados e municípios. “E houve um efeito positivo, com a contratação de pessoas de forma remota e ampliação da atuação dos times de Relgov, sem a necessidade de encontros diários no escritório na Faria Lima ou no Plano Piloto.”
No entanto, a sócia da APLV consultoria, Paula Bernardes, faz um alerta: “Há uma perda da possibilidade de conversar com outras pessoas da empresa, de aproveitar as características individuais de cada um. Essa ausência de troca de opiniões no dia a dia empobrece muito o trabalho”, diz.
Maria Eduarda Negri, head de Relações Institucionais & Governamentais da Di
Blasi, Parente & Associados, explica que ela e sua equipe trabalham de forma remota em Brasília, com encontros esporádicos presenciais, que são importantes porque constroem o team building, reforçam os valores e a cultura, além de humanizar as relações. “Mas a possibilidade de trabalhar em casa alguns dias da semana certamente ajuda na rotina doméstica, na convivência com a família, e no desenvolvimento de uma vida mais saudável. Ainda temos um longo caminho para implementar o anywhere office, que é de fato a modalidade de trabalho com maior grau de liberdade a depender do ofício. Porém, o retorno dos eventos em Brasília, São Paulo e Rio de Janeiro demandam nossa presença.
Em relação às ferramentas digitais, não há dúvidas de que oferecem um suporte inimaginável até recentemente, mas até que ponto elas mudam o jogo? Segundo Frederico Amaral de Oliveira, ele não vai chegar a alterar a essência do comportamento humano, que é a base que sustenta o relgov, mas o digital intensifica as características e aumenta a velocidade dos processos. “Não consigo dizer se acessar os parlamentares vai ficar mais fácil ou rápido. Talvez isso não mude muito, ou até fique pior, pois mais atores com a mesma informação podem congestionar a agenda do parlamentar. Mas uma coisa que acredito que vai acontecer é a diversificação de estratégias, em função da democratização das informações.”
De acordo com Giuliana Franco, o digital é um facilitador de contatos, uma excelente ferramenta para cruzar dados e informações, o que no passado era feito “na unha”. Contar com plataformas como Sigalei, Data Policy, Inteligov significa ter um diferencial competitivo e acesso a dados mais confiáveis e ágeis. “Em uma mesma plataforma você consegue acompanhar um projeto de lei, a agenda da autoridade, o discurso do stakeholder e a pauta da semana na agência reguladora. Tudo isso reduziu em umas quatro horas do dia do analista de backoffice, que tinha que ler individualmente tudo isso e, depois, consolidar.”
Para ela, as ferramentas digitais são apoios necessários para uma estratégia de atuação, mas não elaboram conteúdo. “Ainda se faz necessária a experiência e a vivência adquirida para se fazer uma boa defesa de interesses”, comenta. E faz um exercício de ficção científica. Existem estudos que indicam que máquinas serão mais inteligentes que humanos em 30 anos e que, por isso, elas serão inseridas no nosso corpo, como um chip, ou uso de displays como óculos e relógios. Será que teremos isso no lobbying? Creio que sim!”.
Sarah Bonadio, head de Assuntos Corporativos e Sustentabilidade América Latina/Sanofi Consumer Health, considera que as negociações presenciais não perderam espaço e que os profissionais estão aprendendo a criar relações em novos formatos e eventualmente o diálogo presencial ou online devem chegar ao mesmo resultado. “Acredito que ainda somos seres sociais, o que faz o olho no olho ter uma importância fundamental na criação de confiança. Mas poder ter o diálogo online nos permite ser mais eficientes, transparentes… isso foi uma mudança muito positiva para equipes que ficam longe de centros de decisão como Brasília.”
“A interação presencial continua necessária e gera confiança entre as partes”, comenta Giuliana Franco. “Frequentemente decisões são feitas no espaço do olho no olho, da leitura do body language. Muitas vezes a gente vê o decisor discordando sem falar. Um lobista experiente saberá a dosagem de qual forma de engajamento usará diante das necessidades.
Há sempre os benefícios em se mandar uma mensagem por WhatsApp às sextas e ir presencialmente às quartas ao Congresso.” Frederico de Oliveira, da Sigalei, acha que o presencial ganhou ainda mais valor, pois o encontro presencial será utilizado em situações em que as opções mais baratas não atendem as necessidades. “Com a aceitação que videoconferência é uma opção, os encontros ao vivo serão utilizados em situações mais estratégicas.” Maria Eduarda Negri concorda: “O olho no olho não é primordial para o avanço de agendas, mas auxilia na construção de relacionamentos. Fica mais fácil se aproximar do interlocutor, avaliar as expressões corporais e ler o mood da interação”, afirma.
A especialista da Shell Brasil considera que a presença física em uma reunião também tem um fator simbólico: ressaltar a importância do tema a ser tratado. “Desta forma o interlocutor entenderá que se uma liderança da empresa viajou até Brasília, bloqueou um ou dois dias para a reunião, se deslocou até ele, isso traz um peso e uma percepção de importância que ajuda na construção de relacionamento”, revela Julia Vianna.
Ao abordar o futuro da atividade, a sócia da APLV consultoria, Paula Bernardes, afirma que a pandemia, aliada às instabilidades políticas, trarão mudanças. “Acredito que o novo governo apresentará muitos desafios para se consolidar. Vejo a atividade de relgov crescer cada vez mais para poder dar conta da complexidade das discussões e ações nas empresas.”
Giuliana Franco aposta na capacidade de adaptação dos profissionais de relgov. Para ela, o lobista é um ser adaptável, um camaleão. “Seguirá as mudanças político-institucionais e os compromissos que seus setores e empresas firmarem. Encarará melhor as discussões sobre diversidade, governança, propósitos e seguirá evoluindo. A tendência é que a transparência seja maior e que isso traga equilíbrio competitivo.
O que vai definir uma boa defesa de interesses será a argumentação com uso robusto de dados e novas tecnologias.