No século XXI, não há espaço para preconceitos em relação a orientação sexual, cor da pele, gênero, pessoas com deficiência ou qualquer outro tipo de discriminação. Um futuro diverso e repleto de possibilidades se descortina à frente, com a incorporação de pessoas de todo tipo e origem social. No entanto, a realidade é outra, muito distante desse retrato ideal – e desejável.
O preconceito é injustificável e, mais, inaceitável. O rigor da lei e a repressão a comportamentos preconceituosos são importantes, mas a única solução real para o problema passa pela educação, caminho para a construção de uma sociedade justa e igualitária.
No Brasil, as pesquisas registram um aumento da quantidade de pessoas que se consideram vítimas de preconceito. Segundo o Instituto Datafolha, o número pulou de 23%, em 2008, para 30% em 2019. A pesquisa, de 2019, mostra que 30% dos brasileiros dizem ter sofrido discriminação por causa da classe social. Entre as outras razões pelas quais sofreram preconceito estavam local de residência (28%), religião (26%), sexo (24%), cor (22%) e orientação sexual (9%). Gays e lésbicas são as grandes vítimas do preconceito por orientação sexual, de acordo com o Datafolha: 55% deles afirmam já terem sofrido preconceito. Os bissexuais vêm logo atrás (38%) – as queixas dos heterossexuais se restringem a 6%.
A pesquisa indicou que 35% das mulheres (e somente 11% dos homens) declararam já ter sofrido preconceito de gênero. A pesquisa revela ainda que 22% dos brasileiros disseram já terem sido vítimas de preconceito racial. A discriminação é maior entre os entrevistados que se autodeclararam pretos: 55%, seguidos de 30% dos indígenas, 18% dos pardos, 11% dos brancos e 9% dos amarelos.
Como se não bastasse, o preconceito tem relação direta com a violência. De acordo com dados do SUS (Sistema Único de Saúde), um integrante da comunidade LGBTQIAP+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgêneros, Queers, Intersexos, Assexuais e Pansexuais +) é agredido por hora no país. A triste situação se estende à população preta: o mesmo SUS registrou incremento de 59% das mortes violentas no Brasil contra pretos e pardos (classificação do IBGE); no mesmo período (entre 2011 e 2019), esse tipo de morte só aumentou pouco mais de 1% entre brancos.
Em uma sociedade desigual, discriminatória e violenta como a brasileira, como fica a profissão de relações governamentais? Que reflexos esses comportamentos e atitudes provocam na atividade? Como combater as más consequências?
O primeiro passo, nem sempre fácil, é identificar o preconceito, muitas vezes velado. De acordo com Juliana Marra, Gerente sênior de Relações Institucionais e Governamentais da Unilever, o preconceito no ambiente corporativo acontece de variadas maneiras, inclusive de forma clara, com ofensas explícitas. “No entanto, as mais comuns são as sutis como, por exemplo, não envolver uma pessoa declaradamente LGBTQIAP+ em projetos de grande exposição ou limitar sua influência em projetos não relacionados à diversidade. Justamente por ser um processo muito sutil, é difícil combatê-lo”.
Anita Cardoso, consultora e palestrante nas áreas de relações públicas, comunicação organizacional e responsabilidade social, concorda que os preconceitos, tanto nas organizações quanto na sociedade, se apresentam de forma camuflada. “É importante ressaltar que o preconceito faz parte de uma construção social de determinada sociedade e por isso, está na raiz da mesma. Ele se manifesta de diversas formas: capacitismo (contra PcDs), machismo, etarismo, racismo, sexismo, etnocentrismo, classicismo, gordofobia e LGBTQIAP+fobia (contra pessoas com orientação de gênero diferente de seu gênero físico “criado” pela sociedade)”. Segundo Rafa Costa, coordenador de Engajamento da Climate e membro da Associação Brasileira de Psicologia Política (ABPP), o preconceito é tão sutil, que se manifesta de forma inconsciente. “Esse processo dificulta a compreensão ou mesmo o suporte de outras pessoas que não estão sujeitas a sentirem e estabelecerem de maneira compartilhada as representações e os signos de rejeição, suspeita e/ou hostilidade experimentadas pelas vítimas de preconceito”.
Cardoso acredita que os principais instrumentos para combater o preconceito são educação para a diversidade, inclusão e legislação. O importante seria uma educação desde a primeira infância, onde a família e seus filhos compartilhassem suas diversidades, valores, culturas e religiões, entre outros pontos. “A punição deve vir como ferramenta última, para os casos de violência extrema. O fim do preconceito tem princípio educacional e a sua manutenção tem princípio na punição, ou seja, quanto mais punição, mais violência e mais preconceito”.
Elisa de Araújo, gerente de Relações Governamentais da Coca-Cola, afirma que o Brasil tem avançado, ainda que vagarosamente, na construção de leis e políticas públicas que buscam combater o preconceito. “Por exemplo, no caso do preconceito racial, temos legislações buscando atacar pontos estratégicos e promover a igualdade, desde a política de cotas para negros terem acesso à universidade pública até a equiparação do crime de injúria racial ao crime de racismo, passando pelo Estatuto da Igualdade Racial e pela lei do ensino da história da África nas escolas. Porém, ainda existem problemas na implementação destas políticas e punições”, lamenta.
No mundo corporativo, os problemas também persistem, mas as empresas buscam continuamente soluções. Segundo Juliana Marra, a maior parte das organizações possui códigos de conduta com regras claras a respeito do tratamento das pessoas. “Aqui na Unilever, por exemplo, as regras são muito claras. A empresa está comprometida com um ambiente de trabalho que promova diversidade, oportunidades iguais e onde exista confiança mútua, respeito pelos direitos humanos e não haja discriminação. Portanto, qualquer ação que venha a ferir esses princípios será avaliada e consequentemente punida, se for o caso. Para isso há a área de Business Integrity, ou área de Compliance, o canal de denúncias onde você pode fazer relatos de forma anônima e um comitê que avalia os casos”.
Ela crê que, para promover a igualdade dentro das empresas, é necessário trabalhar para aumentar a presença das minorias entre os líderes. “No caso de gênero, observo que há muitas empresas que possuem metas para ter o mesmo número de líderes homens e mulheres, mas isso não se aplica tanto às pessoas LGBTQIAP+”.
O comportamento das empresas na busca por inclusão também é destacado pela gerente de Relações Governamentais da Coca-Cola, que ressalta que é possível observar organizações que assumem compromissos públicos de promoção de equidade de raça e gênero, como programas de trainee para contratação de pessoas negras. “São instrumentos que me parecem muito positivos e eficazes, ainda que insuficientes. Para o mundo corporativo, é necessário um profundo processo de educação e compromissos concretos de promoção da equidade. As punições são necessárias, claro, mas a educação, a sensibilização de lideranças, o letramento racial e os compromissos empresariais me parecem os melhores instrumentos”. Elisa de Araújo dá o exemplo do preconceito racial. “A partir do momento que compreendemos que a disparidade racial nos cargos de liderança não vai se desfazer sozinha, devemos aceitar que a construção de políticas de ação afirmativa é o mecanismo pelo qual podemos promover a inclusão. A política de cotas raciais para acesso à universidade pública e programas como FIES e ProUni permitiram (e permitem) que jovens negros tenham acesso ao ensino superior, como eu tive – e aí é possível vencer uma barreira, a da educação formal. Em seguida, é preciso promover oportunidades para que as pessoas ascendam às posições de liderança. Promover o letramento e a diversidade educam o olhar. Quanto mais pessoas diversas presentes num espaço, mais espaços se abrem para outras pessoas diversas”.
Para Anita Cardoso, um dos melhores caminhos para a inclusão são as cotas – para negros, povos originários, LGBTQIAP+ e outras minorias. “Mas isso é o princípio da reposição do gap histórico e cultural de nossa sociedade. Se tivermos um país com políticas públicas educacionais que abranjam toda a população sem distinção de classe, com o passar do tempo teremos grupos sub-representados entrando em fatias da sociedade, sem a necessidade de cotas. No momento, no entanto, o problema só será solucionado pela força de políticas públicas de inclusão”.
A inserção das minorias no ambiente corporativo passa também pelos esforços na redução dos estigmas, segundo Rafa Costa. “Devemos deixar de lado a patologização e o cerceamento das dessemelhanças, abandonar de uma vez por todas os velhos padrões de recrutamento e seleção, que reduzem os sujeitos a meros blocos de personalidades fixas e imutáveis, projetar programas multidisciplinares de promoção e prevenção, que atuem no sentido contrário ao do negligenciamento”.
Ações afirmativas, leis e códigos de conduta são necessários, pois o preconceito não se limita a tratamentos diferenciados por parte das empresas, mas também é observado entre os colegas. “A maioria dos casos é sutil. Frases, expressões e piadas ainda são usadas como desculpa para que as pessoas expressem preconceito. O acesso à informação atualmente é muito mais simples, há ampla divulgação de casos de preconceito na sociedade. Não se pode justificar preconceitos por desconhecimento do tema”, diz Juliana Marra.
“Infelizmente o preconceito está presente entre os colaboradores”, confirma a gerente da Coca-Cola. “Quando abrimos os olhos para enxergar de fato como opera o preconceito racial, você o percebe presente em todas as relações sociais. E isso nega aos profissionais negros uma série de oportunidades na carreira. Quanto constrangimento é gerado quando você encara esse tipo de afirmativa e se sente não-pertencente ao espaço que você está buscando ocupar? Quanto adoecimento psíquico esse tipo de situação gera?”, questiona. Rafa Costa concorda: “Se o preconceito não existisse entre colegas, não teríamos uma conjuntura onde cerca de 21,6% dos LGBTs entrevistados em recente pesquisa da UFMG e da Unicamp estavam desempregados. A questão talvez seja: como podemos criar espaços mais acolhedores, que promovam a diferença e a diversidade como atributos da natureza humana? Como séculos e séculos de cooperação e interação social neste planeta ainda não foram suficientes para compreendermos isso?”.
As empresas têm muito a ganhar quando combatem o preconceito, não apenas em termos de imagem junto a clientes e sociedade em geral, mas também com aumento de faturamento. “São inúmeras as vantagens para uma organização quando ela assume efetivamente uma política de diversidade e inclusão”, revela Anita Cardoso. “E imagem e reputação são sinônimos de faturamento, de saúde reputacional e de impacto social em escala. Não há dúvidas de que a organização ganha de dentro para fora e de fora para dentro”.
Segundo Elisa de Araújo, o ganho se estende à inovação dentro das organizações, com maior circulação de ideias. “Pesquisas comprovam que a diversidade promove oxigenação dentro das empresas. Pessoas com trajetórias diferentes pensam de forma diversa e promovem ações ricas, com nuances distintas, seja em que área da organização for – em relações governamentais, no marketing, nas vendas”. E os clientes estão atentos: “Adotar práticas contra o preconceito deveria ser uma obrigação estratégica da empresa. O último estudo Edelman Trust Barometer 2022 aponta que os consumidores cobram cada vez mais compromissos e ações de responsabilidade social e ambiental das empresas. É inaceitável que uma organização apenas publique políticas e não as siga na prática”, afirma Juliana Marra.
Esse trabalho de inserção de promoção da agenda de diversidade e inclusão nas empresas cabe, em muitos casos, às equipes de relações governamentais. A gerente de Relações Governamentais da Coca-Cola destaca o papel desses profissionais. “Atuamos, como o próprio nome diz, em relacionamentos com diversos interlocutores. O debate da inclusão e da diversidade não pode mais ser contornado. Além disso, hoje as empresas têm pautas diversas – de negócio, de responsabilidade socioambiental, de ESG, de direitos humanos. Ter pessoas diversas para dialogar sobre essas pautas torna essa construção rica, profunda e legítima”.Segundo a gerente sênior de Relações Institucionais e Governamentais da Unilever, a área de relgov é estratégica para a promoção da agenda de diversidade e inclusão nas organizações. “Um dos caminhos é promover a diversidade dentro da própria equipe de trabalho. Viver o modelo diverso também nos faz naturalmente trabalhar pela causa”.
Para que essa agenda seja adotada integralmente e com o respaldo necessário, é preciso comunicar – e convencer – os públicos de interesse das empresas. “Parece-me que chegamos num momento onde não saber a importância dessa temática é anacrônico. Promoção da igualdade racial saiu de um espaço específico e ganhou o todo”, comenta Elisa de Araújo, gerente de Relações Governamentais da Coca-Cola. “Sensibilizar stakeholders que ainda não compreendem isso é um desafio e tanto – que exige coragem. Requer aliados, como os líderes já sensibilizados que se tornam porta-bandeiras e utilizam seus espaços para promover a pauta e os compromissos necessários. É preciso compromisso de todos – e levar a importância desse compromisso a todos é uma forma de abordar a temática”. Já Juliana Marra considera que é preciso abordar os parceiros tendo clareza das demandas e promovendo a conexão com os objetivos da empresa.
O trabalho deve se estender também à formulação de políticas públicas que combatam os preconceitos. Segundo Marra, a discussão e a construção de políticas públicas passam por um debate amplo, que envolve todos os elos da cadeia, e as empresas têm papel relevante na adoção e aplicabilidade das regras, procedimentos, guias ou até mesmo regulamentos criados. “A participação ativa na construção de políticas públicas, contribuições e proposições no âmbito do Legislativo e Executivo, bem como eventuais alianças entre organizações são exemplos aplicáveis na promoção da pauta. Acredito que umas das melhores formas de fazer lobby é demonstrar com clareza o que se pode alcançar objetivamente com a evolução do tema. Nesse caso, demonstrar o quanto a adoção de políticas de diversidade contribui com a inclusão de pessoas no mercado de trabalho, aumento de renda e impacto na economia, são bons exemplos”.
Cardoso ressalta que as relações governamentais são fundamentais no apoio à elaboração de políticas públicas, no lobby junto à Câmara e ao Senado para que as organizações possam ter mais facilidades nos processos inclusivos, como a educação profissional e os planos de carreira. “É fato que é dever do Governo atender às demandas primárias como a educação, mas, como o nosso país detém um déficit histórico nessa área, algumas políticas de incentivo, que não só as leis, para as organizações, poderiam ajudar a eliminar esse sistema vicioso de pobreza e diversity washing”. Elisa de Araújo considera que empresas e governos podem construir parcerias e políticas públicas. “No combate ao racismo, a ideia é incentivar a educação e a contratação de pessoas negras. Acredito na parceria destes atores políticos para oferecer e construir soluções para problemas da nossa sociedade. Seguir tendo mais da metade da população vulnerabilizada e à margem retira de todos nós a oportunidade de crescer como país e evoluir como sociedade”.