Não é de hoje que boa parte das mazelas do Brasil é atribuída pela sociedade aos políticos, acusados de incompetência ou, pior, corrupção. Nos últimos anos, no entanto, a crítica subiu de tom e passou a ser endereçada ao próprio modelo de governo do país, a democracia, com alguns segmentos propalando as supostas vantagens de um governo autoritário e forte. Seriam problemas de uma democracia recente e de um país com histórico autoritário? A atuação de partidos políticos e a participação da população na vida política e pública também fazem parte dessa equação.
O diretor da Dominium Consultoria, Leandro Gabiati, não é assombrado por dúvidas – para ele, a democracia é o sistema que melhor tem nos permitido conviver, respeitando premissas consideradas básicas e que estão presentes no sistema valorativo das pessoas. “Ela preserva valores que até o cidadão menos ilustrado tem presente. Ele tem consciência de que existe um sistema que oferece direitos e garantias a qualquer cidadão. Todos contam com uma série de benefícios, entre eles a liberdade de ir e vir, de falar, de se associar, e de pleitear perante o poder público.”
Allana Rodrigues, gerente de Relações Governamentais da Associação Nacional das Indústrias Processadoras de Cacau (AIPC), concorda e acrescenta que, além da liberdade, a democracia possui um componente diretamente relacionado ao seu sucesso: representatividade. “Um regime político democrático pretende não apenas evitar que quem está no poder ceda à tirania, em detrimento do bem comum, mas também fazer com que prevaleça o interesse público. Existem evidências que relacionam o regime democrático à promoção do crescimento econômico e ao desenvolvimento de benefícios sociais que, associados à estabilidade institucional, favorecem a expansão da atividade econômica”, afirma.
“Demanda trabalho, esforço, cuidado e vigilância constante, mas merece ser protegida a todo custo”, defende Natalia Sant’anna de Figueiredo, especialista de Policy na Lemon Energy, startup de energia renovável. “A democracia como conhecemos é um sistema que depende de suas instituições e favorece a liberdade de ideias, o direito de defendê-las e a possibilidade de discordar.”
Para Rafael Cabral Maia, sócio na Maia Consultoria e Relações Governamentais, o mundo já testou alguns sistemas políticos ao longo de sua história e, embora não seja perfeita, a democracia tem se mostrado uma importante aliada na construção dos mais longevos períodos de paz e prosperidade até então. “Quando o Estado garante o direito às liberdades individuais de seus cidadãos, como o direito à vida, à propriedade e à liberdade de opinião, por exemplo, permite que as pessoas se envolvam no processo de criação da sociedade ideal.”
Se, em outros países, a democracia já pode ser considerada uma velha conhecida, com séculos e séculos vividos sob esse sistema, ela é novidade em boa parte do planeta, especialmente na América Latina, que acumula séculos sob governos autoritários, com naturais consequências para a vida de suas populações. “No Brasil, é difícil pensar em democracia plena. Há questões importantes que nossa democracia precisa resolver, como desigualdade social, problemas na
segurança pública e déficit habitacional. Para ser bem avaliada, precisa integrar totalmente a população alijada do sistema de participação política e melhorar suas condições de vida. Quanto mais desigual for o Estado brasileiro, menos democrático será”, argumenta Maia.
Os últimos 38 anos de democracia, diz ele, apontam para uma direção de maior transparência nas ações do governo e confiança nas instituições públicas, características difíceis de serem atribuídas ao sistema político brasileiro entre os anos de 1964 e 1985. “Em termos econômicos, a fé na democracia brasileira contribuiu para a estabilidade da moeda e o controle inflacionário, atraindo investimentos e reduzindo a desigualdade de renda, fatores que colaboraram para o país se tornar um dos principais players no mercado internacional em diversos setores da economia.”
Gabiati também cita as desigualdades materiais e imateriais da sociedade como sinal dos problemas ainda existentes na aplicação da democracia no Brasil. “Se compararmos com países como Reino Unido e Estados Unidos, que passaram séculos sob sistemas democráticos, tivemos apenas poucos anos nesse modelo. Somando todos os períodos democráticos do nosso país, são 50 anos de democracia, no máximo, em 500 anos de história”. Por isso, Natalia de Figueiredo considera que a democracia brasileira é um trabalho ainda em desenvolvimento. “Tivemos muitas rupturas institucionais recentes em nossa história. A Constituição mais democrática da nossa República foi editada em 1988. Sua solidez vem sendo construída a cada dia, com a defesa das instituições.”
Allana Rodrigues, da AIPC, atribui essa firmeza ao institucionalismo característico do sistema político brasileiro, que, em última instância, constitui um dos principais fatores da democracia brasileira, “tanto pelos arranjos formais como pelos informais que permeiam as nuances do poder decisório e das interações entre os Poderes”. Ela observa que, “desde a redemocratização, a maioria tem escolhido o governo; a minoria, também representada, desempenha o papel do contrapeso na forma de oposição”.
O diretor da Dominium Consultoria concorda que a democracia brasileira é forte e deu uma demonstração recente de que, apesar de diversos problemas, vem se consolidando. “Se a gente olhar para trás e observar tudo o que foi conquistado nestes últimos 40 anos, logicamente ainda falta muita coisa, mas aconteceram diversas conquistas também.” Para Rafael Maia, as instituições públicas são uma das variáveis positivas nessa equação, o que não apenas colabora para que a democracia seja vivida de maneira plena, como ajuda a
solidificá-la.
“Passamos por um período de forte instabilidade política nos últimos quatro anos e conseguimos manter eleições minimamente limpas, apesar de termos sido bombardeados insistentemente por fake news no decorrer do processo eleitoral”, avalia Maia. “Particularmente, acredito que a resposta institucional aos atos do dia 8 de janeiro, nos últimos meses, tenha sido contundente o suficiente para demonstrar o quão importante é nosso sistema político para nós.”
A reação da sociedade aos acontecimentos do início do ano em Brasília demonstra amadurecimento e rejeição a atos antidemocráticos, afirmam os analistas. “Os acontecimentos do dia 8 de janeiro representaram um grave ataque à democracia brasileira, tanto pelos meios, como pelo que se pretendia. Todavia, surtiram efeito contrário ao pretendido. A opinião pública e os representantes dos três Poderes demonstraram coesão no posicionamento frontalmente contrário aos ataques impetrados contra seus edifícios-sedes, e, principalmente, contrário às investidas antidemocráticas de uma minoria que tentava deslegitimar o processo eleitoral. Sem dúvida, a democracia restou fortalecida”, ressalta Allana Rodrigues.
“Os acontecimentos de janeiro foram lamentáveis. Uma narrativa de golpismo estava colocada há algum tempo. Do ponto de vista das instituições, foi uma prova importante pela qual a democracia passou. Ela demonstrou força, uma força que vem da defesa das instituições, um papel que a sociedade precisa apoiar”, alerta Natalia de Figueiredo, da Lemon Energy. “A democracia brasileira foi forte, as instituições agiram rápido e continuam agindo para punir responsáveis e participantes do episódio. O novo governo também agiu de forma firme e tomou o cuidado de dar um recado contundente, à altura do evento, mas sem se deixar levar pela oportunidade de pesar demais a caneta”, comenta Maia.
No entanto, é preciso fazer mais. Não são poucos os analistas que consideram que a população brasileira é pouco afeita a participar da vida pública do país, o que tem consequências, como reforçar o poder de influência de minorias organizadas. Gabiati atribui à construção histórica do Estado e da sociedade as razões para essa baixa participação, quando comparada com outros países, inclusive da América do Sul. “No Brasil, foi necessário, primeiro, criar um Estado – era preciso construir uma entidade que organizasse a sociedade, porque ainda não se tinha cidadãos, mas pessoas com baixo nível educacional ou imigrantes sem qualquer vínculo de pertencimento à terra. Além disso, aqui houve uma clara opção por evitar o desmembramento de territórios e por construir a figura de um Estado centralizador. Essa escolha do passado possui desdobramentos até os dias de hoje.”
De acordo com a gerente de Relações Governamentais da AIPC, apesar de necessária, essa participação popular não é comum ou culturalmente enraizada. “Fala-se muito em ação social participativa, mas ainda há um distanciamento relevante entre sociedade civil e Estado. Ainda é notável, em parte da população, a falsa ideia de que política é para políticos”, lamenta. “Há um aumento da participação e representatividade civil, embora não perene e transversal.
A internet tem contribuído sobremaneira para esse incremento, mas observa-se que não é uma interação orgânica, senão muitas vezes ensejada por episódios políticos incomuns.”
Rafael Maia concorda que tem crescido a participação voluntária em protestos físicos e manifestações virtuais, mas considera que estas últimas não podem ser confundidas com participação política. “A sociedade brasileira deveria debater mais quais investimentos têm sido feitos para garantir que os direitos constitucionais cheguem a todos de maneira igualitária. Cobrar mais para ter melhores resultados dentro do sistema político proposto é fundamental para o crescimento da nossa democracia, mas enquanto estivermos tratando de temas que apenas fomentam a polarização política, nosso progresso será mais lento.”
Um caminho natural para incrementar a participação popular seriam os partidos políticos. Mas eles seriam legítimas representações da sociedade? Efetivamente escutam e procuram atender às suas demandas? Para Rodrigues, sim. “Os partidos políticos são representações legítimas da sociedade, mas não são as únicas. Não há um monopólio da representação, mas é comum que reformas políticas pretendam aumentar o poder das burocracias partidárias. Os partidos seguem sua ‘cartilha ideológica’ e buscam atender aos anseios de seus eleitores sem, contudo, perder de vista sua própria sobrevivência política, e, por vezes, deixam as demandas de sua base em segundo plano.”
“Pode-se ter inúmeras críticas aos partidos políticos e à sua função, mas eles estão inseridos em um determinado contexto e continuam sendo o principal elo entre o cidadão e a participação política. A solução não é criticar os partidos políticos, mas justamente pensar em aprimorar todo nosso sistema representativo”, avalia Leandro Gabiati.
A criação de um grande número de siglas partidárias, teoricamente, deveria demonstrar que as mais diversas correntes de pensamento da sociedade encontram representação na política. “Porém, forçados talvez por pragmatismo, aparentam terem se tornado uma reunião de forças de conveniência, aglomeradas unicamente por simpatia ao poder”, verifica Rafael Maia. “Há exceções, naturalmente. Podemos citar partidos como o PSOL e o NOVO, por exemplo, que defendem pautas claras, além de manterem uma dinâmica interna criada para favorecer o crescimento dos grupos sociais que representam. Ou seja, esses partidos, sejam eles de esquerda ou de direita, embora poucos, realmente conseguem aglutinar
internamente, tanto no discurso, quanto na prática, questões sociais importantes para os dias de hoje. Se sobreviverão ou não ao dia a dia da atividade política no Brasil, só o tempo dirá. A meu ver, os problemas sociais mais importantes atualmente encontram eco dentro dessas estruturas partidárias.”
O grande número de partidos não é visto necessariamente como um problema. O modelo permite tentar representar uma sociedade desigual e com correntes bastante díspares. O risco é a dificuldade para governar. “Se, por um lado, existe a tentativa de instituir um pluralismo democrático, por outro, há um custo intrínseco para formação de coalizões e consenso político, culminando em ingovernabilidade. O fracionamento dos representantes parlamentares inviabiliza ou dificulta não apenas as negociações com o Executivo, mas também entre lideranças partidárias dentro do Congresso Nacional. A cláusula de desempenho tem demonstrado ser uma solução eficiente, aumentando a concentração de cadeiras nos maiores partidos e diminuindo o grau de fragmentação partidária”, afirma Allana Rodrigues.
Segundo Natalia de Figueiredo, a questão é o uso que é feito das legendas nas negociações. “O próprio sistema brasileiro criou mecanismos para diminuir o uso de legendas de aluguel, e temos observado as consequências desses mecanismos a cada eleição. Precisamos ver se isso será efetivado; já vimos a diminuição do número de partidos vitoriosos nas eleições, com as cláusulas de barreira.”
Rafael Maia também acredita que a cláusula de barreira atue para a evolução do sistema. “É um movimento que deve fazer parte do amadurecimento da nossa democracia. Caso a sigla não tenha um desempenho minimamente suficiente nas eleições, e não demonstre capacidade de representação por voto, tende a perder importância. Há restrições tanto de tempo de TV, quanto de fundo partidário e até no tempo de debate no parlamento, entre outras. Esse mecanismo acaba consolidando a união de forças e, com o passar do tempo, pode reduzir o número de partidos no país.”
Nos últimos anos, o cenário político apresentou maior tendência conservadora, o que pode ser interpretado como uma mudança na forma de pensar do eleitorado ou indicar que o país sempre teve tendências conservadoras. Para Allana Rodrigues, o conservadorismo é uma corrente política que tem ganhado visibilidade nos últimos anos, em diversos lugares do mundo, mas que existe há séculos. Fatores cíclicos fazem com que submerja de tempos em tempos, mas ele sempre esteve presente, e no Brasil não é diferente.
“Desde o início dos anos 2000, verificou-se forte reação a pautas progressistas e alinhamento natural a pautas ligadas à moral, à família e aos valores religiosos, como característica da agenda conservadora”, observa Allana Rodrigues. “A internet tem servido de palco importante para a organização e o compartilhamento dessa agenda. O gatilho para a explosão de ondas conservadoras tem sido a proeminência de ‘outsiders’ políticos, que têm incluído o ultraliberalismo e a forte reação aos movimentos LGBTQIA+, feminista, de povos originários e negro em torno do antiesquerdismo, de forma incisiva.”
O diretor da Dominium Consultoria comparou Argentina e Brasil para sua tese de doutorado, e considera que aqui há um DNA mais conservador. “Temos raízes conservadoras e observamos isso no nosso cotidiano, nos preconceitos que a sociedade exibe. Mas os movimentos conservadores também têm seus méritos, por terem trabalhado muito bem grupos, segmentos sociais e econômicos – do agronegócio a igrejas evangélicas. Há um trabalho de base muito grande, um trabalho de comunicação eficaz. Agora, não deixa de ser sadio para a democracia que esses segmentos mais conservadores tenham candidatos que os representem.”
Maia não crê que esse seja o debate principal. “A meu ver, embora parcela significativa da população tenha se aliado a um discurso conservador nas eleições de 2018 e 2022, sobretudo na primeira eleição, ficou clara uma motivação com origem no descontentamento com a classe política de uma forma geral. Dar roupagem de nova política a um velho ator foi a mágica criada pelas redes sociais e seguida pelos cidadãos mais insatisfeitos. O mote conservador da campanha é, a meu ver, meramente conveniência.”
Todos esses elementos tornam a representação de interesses no Brasil uma atividade muito desafiadora. “Os mapeamentos se tornam mais complexos e as estratégias precisam ser definidas com cuidado, exigindo permanente capacitação. Precisamos levar em consideração os processos históricos que construíram nosso país. As instituições são recentes, comparadas a outras democracias do mundo, e não estão necessariamente preparadas para a defesa de interesses. Alguns mecanismos de proteção e regulamentação do trabalho de defesa de interesses são recentes, e ainda estão sendo apropriados internamente”, diz Natalia de Figueiredo.
“O modelo de representação no Brasil é pluralista, as ações de representação de interesses não são concentradas e demandam crescentemente a formação de coalizões e consensos. É nesse cenário que se torna cada vez mais necessária a regulamentação do lobby, a fim de promover a institucionalidade política. Quanto maior for a capacidade de os diferentes atores defenderem seus interesses legítimos, maior será a aderência a valores democráticos e menor o desequilíbrio político”, crê Allana Rodrigues.
Esse quadro, segundo Gabiati, beneficia grupos com maior poder econômico, que têm mais possibilidades de representar e defender seus interesses. “Recentemente, temos visto que muitas Organizações Não Governamentais (ONGs) ou organizações da sociedade civil com maior capacidade técnica, de alguma forma, conseguem ingressar no processo decisório. Não representa uma solução definitiva, mas o processo tem melhorado.”
Rafael Maia considera importante que o profissional de relações governamentais se blinde das discussões políticas mais intensas e concentre atenção no que defende junto aos parlamentares e outros atores políticos brasileiros. “Quanto mais planejadas forem suas ações, menor o risco. Muitas vezes o nível de interlocução é direto e mudanças sutis no discurso podem fazer a diferença no resultado.” Segredos de atuação que só os profissionais de mercado conhecem – e que certamente fazem a diferença.