Quando Marc Plattner e Larry Diamond lançaram o famoso Jornal da Democracia, em 1989, a democracia estava ressurgindo globalmente. Mesmo assim, países sob tal regime não eram maioria no mundo. O que Samuel P. Huntington passou a chamar de “terceira onda da democracia” se espalhou por regiões como a América Latina, aumentando a porcentagem de Estados que eram democracias de um quarto, em 1974, para cerca de 40%, no final de 1988, e chegando à maioria dos países antes da metade dos anos 1990. Em 1994, mais de 50 países haviam passado de ditaduras para democracias em um espaço de uma década – incluindo o Brasil. Como Plattner escreveu em 1991, as democracias liberais passavam a ser consideradas “as únicas sociedades verdadeira e totalmente modernas”.
Logo, os desafios enfrentados pelas democracias ficaram evidentes. Diferentes acadêmicos passaram a adicionar adjetivos para descrever diversos tipos de “democracias com problemas”. De fato, nos anos 1990, David Collier e Steven Levitsky (que mais tarde ficaria famoso pelo livro “Como as Democracias Morrem”) contabilizaram mais de 500 adjetivos usados por estudiosos para classificar problemas em democracias. A mais famosa classificação foi dada por Fareed Zakaria (o comentarista da rede de TV americana CNN), que considerava que o mundo passava a ver um aumento de democracias iliberais.
No Brasil atual, vale a pena pensarmos nos desafios da democracia em termos de participação e representação
político-partidária. É comum definirmos democracia de forma simples e focando nos procedimentos desse tipo de regime. De forma geral, as democracias têm eleições livres e justas, além de garantir direitos políticos e civis aos
seus cidadãos.
Duas características são marcantes em democracias. Primeiro, a participação, que pode ser definida como séries de ações dos cidadãos, por meio das quais eles buscam transmitir suas opiniões, perspectivas e demandas aos envolvidos na formulação de políticas públicas. Ou seja, buscam influenciar o governo e a política. O segundo aspecto central é a representação, o que significa que as preferências e ações dos líderes do governo refletem as dos eleitores. Ou seja, os formuladores de políticas levam em consideração as opiniões, perspectivas e demandas dos cidadãos ao fazer políticas públicas.
Diferentes grupos de cidadãos brasileiros participam da democracia do país, seja por meio das redes sociais, do voto ou até mesmo de protestos. Um aspecto importante dessa participação é a atuação de grupos organizados. Dados coletados pelo autor mostram que a quantidade de credenciais entregues pela Câmara dos Deputados para grupos organizados mais do que quadruplicou entre os anos 1990 e a atualidade. Mais grupos – e grupos mais diversos – tentam acessar o Congresso formalmente.
No senso comum, a relação entre lobby e corrupção é vista diversas vezes como muito próxima. O histórico tem algum fundamento – a partir de descrições anedóticas e não padrões estatísticos com clara identificação causal. Certamente no Brasil do século 21 ainda existem profissionais que confundem lobby e corrupção. Mas a realidade das relações entre governos e empresas está longe de ser definida apenas por esses casos. O lobby pode ser definido como o processo por meio do qual representantes de grupos de interesses, agindo como intermediários, levam ao conhecimento dos legisladores ou dos decision-makers os desejos de seus grupos. Lobbying é, portanto, e sobretudo, uma transmissão de mensagens do grupo de pressão aos decision-makers por meio de representantes especializados.
Os resultados de grupos de interesse e grupos de pressão podem ser positivos ou negativos para a sociedade. Em artigo publicado no JOTA, Seligman, Lazzarini e Melo (2018) argumentam que a tradição do capitalismo de laços no Brasil é buscar propostas “ganha-ganha”, com a sociedade ficando de fora: ganha a empresa, com benefícios fiscais, crédito ou proteção setorial, e ganha o político, com mais apoio para seu grupo e os mais diversos benefícios pessoais. Mas a verdadeira transformação requer que as empresas, na relação com o Estado, mostrem com clareza o que a sociedade pode efetivamente ganhar com suas propostas.
Os autores propõem que as relações governamentais realmente responsáveis devem se pautar pelo “ganha-ganha-ganha”: a empresa estimula adoção de políticas que aumentem sua produtividade e crescimento sustentável; o político aumenta sua reputação ao impulsionar projetos transformadores; e a sociedade se beneficia de ações público-privadas tendo seus impostos gastos com mais critério e maior efetividade, evitando impactos negativos e, preferencialmente, criando efeito socioambiental
positivo.
Como se sabe, no final de 2022, a Câmara dos Deputados aprovou o projeto que regulamenta a prática do lobby junto a agentes públicos dos três Poderes (o texto precisa passar pelo Senado). Segundo pesquisas de opinião com parlamentares, conduzidas pelo JOTA, havia apoio para a regulamentação da atividade desde pelo menos 2016, variando mês a mês – apoio, diga-se de passagem, comum entre partidos de oposição e situação, de esquerda e da direita. Em fevereiro de 2017, por exemplo, 65% dos deputados eram favoráveis à regulamentação do lobby. Em julho de 2016, o apoio estava em 57%. Uma constante em todas as pesquisas foi que um número irrelevante de parlamentares disse não saber ou não quis responder aos questionários. Ou seja, o assunto sempre esteve no radar dos deputados.
Grupos de influência fazem parte das democracias modernas. Mais do que isso, o tema é cada vez mais estudado e ganha relevância. Nos Estados Unidos, por exemplo, um livro publicado pela cientista política Sarah Anzia recebeu diversos prêmios por mostrar a influência de grupos de pressão na escolha inclusive do período eleitoral de cidades e estados. A autora mostra que eleições off-cycle dos estados (quando não há eleição concomitante para presidente) costumam ter menos participação.
Por isso mesmo, grupos de interesse como sindicatos de professores e trabalhadores municipais se esforçam para que as eleições locais sejam feitas em anos diferentes das presidenciais. Nesses casos, a questão é puramente matemática. Como há menos gente votando, a influência desses grupos organizados nas urnas tende a ser maior e eles podem exercer um controle maior sobre políticos eleitos.
Um outro exemplo é a conhecida Escola de Partidos da Universidade da Califórnia (UCLA). Um grupo de acadêmicos aponta como grupos de pressão são fundamentais na formação dos partidos políticos nos EUA. Primeiro, os eleitores comuns não prestam muita atenção nas primárias. Por isso, o argumento desses acadêmicos é de que os principais atores nas nomeações de candidatos são grupos de interesse, lobistas e ativistas. Portanto, olhar para a democracia é também olhar para diferentes grupos de interesse. Estudar o papel de grupos organizados é cada vez mais importante para democracias e políticas públicas, seja pelos aspectos negativos (como aumentar desigualdades) ou positivos (criar políticas públicas baseadas em dados).
O tema da influência nas políticas públicas é fundamental no Brasil, já que a questão de representatividade partidária também é um desafio no país. No meio da década de 1990, o tamanho médio dos partidos passava dos 60 deputados (no governo Fernando Henrique Cardoso, alguns partidos tinham mais de 100 deputados na Câmara).
No século 21, houve um processo de redução do tamanho médio das bancadas. Essa mudança gerou uma mudança radical na composição do Congresso, com um número alto de bancadas médias e pequenas. Com isso, aumentou-se o número de poderes de veto no Legislativo, o que torna a governabilidade pelo Executivo mais complexa.
A democracia brasileira enfrenta muitos desafios (e vários adjetivos poderiam ser atribuídos a ela). Mas vivemos o maior período democrático da nossa história. E só com a democracia é possível consolidar uma sociedade verdadeira e totalmente moderna.
Fernando Mello é sócio fundador e diretor do JOTA. É PhD em Ciência Política pela Universidade da Califórnia, e mestre em estatística pela mesma universidade. É especialista em instituições políticas e métodos quantitativos. Atualmente, também é professor do Departamento de Governo da Georgetown University, em Washington, DC