Infodemia, fake news e Relações Governamentais
Por Eduardo Galvão*
O caso da Escola Base é um dos mais emblemáticos sobre fake news. Era uma escola particular no bairro da Aclimação em São Paulo. Os proprietários foram acusados de praticar abusos sexuais em alunos de quatro e cinco anos. Após abrirem boletim de ocorrência, as denunciantes chamaram a imprensa para pressionar as autoridades policiais. Houve uma onda de notícias sensacionalistas e a opinião pública reagiu fortemente. As investigações comprovaram a inocência dos envolvidos – tudo não passava do que hoje chamamos de fake news. Mas o resultado foi irremediável: a escola foi fechada, os professores e demais funcionários perderam seus empregos, os acusados passaram a sofrer estresse e fobia, foram isolados socialmente e suas reputações, arruinadas.
Histórias como essa se repetem cotidianamente e causam sérios impactos nas vidas das pessoas, nas suas reputações e círculos sociais, nas atividades das empresas e no trabalho do Governo. Em 2014 uma mulher foi espancada em praça pública no Guarujá após ser acusada, sem checagem, de matar crianças para fazer magia negra. Pombos estariam sendo moídos com a cevada em tanque de uma cervejaria. Beber água de 15 em 15 minutos cura o coronavírus. Em todo o mundo horas e horas são gastas por organizações para esclarecer o desserviço da desinformação causada pela desinformação. As fake news são uma marca do nosso tempo, que desafia governos, organizações e pessoas a repensarem a forma de comunicar e se informar.
O relatório Reuters Institute Digital News Report 2019 revela novos insights sobre o consumo de notícias digitais com base em uma pesquisa com mais de 75.000 consumidores de notícias online em 38 países dos seis continentes. Entre os tópicos estão novos modelos de negócios online pagos, confiança e desinformação, o impacto do populismo e a mudança para aplicativos de mensagens privadas. Seus levantamentos são importantes para entendermos o contexto das fake news no Brasil e no mundo.
A comunicação social em torno das notícias está se tornando mais privada, pois os aplicativos de mensagens continuam a crescer em todos os lugares. Grupos públicos e privados do Facebook que discutem notícias e política se tornaram populares na Turquia (29%) e no Brasil (22%), mas são muito menos usados em países ocidentais como o Canadá (7%) ou a Austrália (7%).
O WhatsApp se tornou uma rede primária para discussão e compartilhamento de notícias em países não ocidentais, como o Brasil (53%), Malásia (50%) e África do Sul (49%). As pessoas nesses países estão mais propensas a fazer parte de grandes grupos do WhatsApp com pessoas que não conhecem. Essa tendência reflete como o ambiente dos aplicativos de mensagens são terreno fértil para o compartilhamento em grande escala de notícias falsas.
A preocupação com desinformação permanece alta. No Brasil, 85% concordam com a afirmação de que estão preocupados com o que é real e falso na internet. A preocupação também é alta no Reino Unido (70%) e nos EUA (67%). Os brasileiros permanecem na dianteira em número de usuários de mídias sociais do mundo. O uso das principais plataformas de redes sociais e de mensagens aumentou significativamente no último ano. O crescimento foi mais acentuado entre os usuários do Instagram (+10), WhatsApp (+5) e YouTube (+8).
As eleições presidenciais de 2018 foram um catalisador e um marco na transformação do brasileiro no uso de mídias sociais. O crescimento do uso de redes sociais coincidiu com o interesse do brasileiro por política. E esses dois fenômenos se encontraram e caminharam juntos.
Aplicativos de mídia social tiveram um papel crucial na campanha de Jair Bolsonaro – tinha apenas oito segundos de publicidade na TV por dia durante o primeiro turno. O WhatsApp se tornou uma poderosa ferramenta de campanha, com cerca de um milhão de grupos sendo criados para promover candidatos nas eleições. Mesmo após a campanha presidencial, os tweets frequentes de Bolsonaro (o presidente anunciou 14 de 22 ministros pelo Twitter) e as aparições do Facebook Live forçaram uma mudança na cobertura da mídia tradicional e os jornalistas passaram a manter uma vigilância constante nas contas de mídia social do presidente e de seus aliados.
Essa enxurrada de notícias na internet trouxe muito ruído. Foi principalmente nas redes sociais que as fake news encontraram terreno fértil para disseminação. Notícias falsas proliferaram no meio das confiáveis como maçãs podres, que contaminaram todo o cesto. Segundo levantamento feito pela Psafe DFNDR Security, aplicativo de segurança para Android, 8,8 milhões de brasileiros foram impactados com Fake News em três meses em 2018 e 95,7% das notícias falsas foram disseminadas pelo WhatsApp. Os dados mais recentes apontam que a confiança geral nas notícias, caiu para 48%, 11 pontos a menos que no ano anterior.
O assunto fake news evoluiu para o estágio de disputa regulatória. No Judiciário, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes autorizou o acesso de advogados ao inquérito que apura a divulgação de notícias falsas e de ameaças contra integrantes do Tribunal. No Legislativo, foi aprovado e enviado à sanção presidencial o projeto da Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet, que regulamenta o funcionamento das redes sociais diante do aumento de fake news sobre a pandemia de coronavírus e ataques a políticos.
Webinar: Verdade x Fake News
No âmbito das Relações Governamentais, a atuação dos profissionais tem impacto direto na atuação das organizações frente ao Poder Público. Para tratar disso o Instituto de Relações Governamentais (Irelgov) realizou o webinar Verdade e Fake News: Como diferenciá-las, que contou com os palestrantes Fábio Zambelli, Analista-chefe do JOTA, e Patrícia Blanco, presidente executiva do Instituto Palavra Aberta. O debate foi mediado por Angela Rehem, sócia-fundadora da Libertas – Estratégias em Relações Governamentais.
Em meio a um ambiente de “infodemia”, discussão de milícias digitais e liberdade de expressão, Patrícia Blanco pontuou o caminho: educação midiática. Enquanto no passado tudo que era publicado nas emissoras de rádio recebia a confiança de ser uma verdade, hoje há a necessidade, conforme afirma a executiva, de aprender a acessar, checar, exercer a leitura crítica e participar do ambiente de comunicação com mais responsabilidade e ética no compartilhamento e disseminação de informações.
Fabio Zambeli reforçou que é necessário qualificar quem recebe informação em vez de ir atrás de quem circulou (o que seria um trabalho árduo e inglório, pois infrutífero). O jornalista falou sobre a importância do papel do profissional de Relações Governamentais nesse ambiente infodêmico, pois influencia as decisões de políticas públicas e o planejamento dos negócios das empresas. Se para o cidadão comum o processo de checar, exercer a leitura crítica e compartilhar com responsabilidade é saudável e importante, para o RelGov é ainda mais relevante.
O trabalho do profissional de RelGov ganha (ou reforça) mais um papel de tarefas diárias: o de funcionar, também, como filtro do que é fake e um escudo contra crises de reputação ou de relacionamento que podem emergir da infodemia, preservando políticas e o ambiente de negócios. Boa parte do tempo dos RelGov’s tem sido dedicado a isso.
O webinar do IrelGov foi um importante instrumento na disseminação dessa função dos profissionais da área. Um grande passo num caminho que ainda será longo.
E, sim, isso tudo é verdade. Eu chequei!
*Eduardo Galvão é professor de Relações Institucionais do Ibmec, fundador do Pensar RelGov e diretor de Relações Governamentais da BCW – Burson Cohn & Wolfe.