A Lei de Cotas
A Lei de Cotas, publicada em 29 agosto de 2012, passaria neste momento por uma revisão. Em seu artigo 7º, a Lei nº 12.711/2012 prevê que a política pública passaria por uma 10 anos após sua publicação. A reavaliação não é obrigatória e tampouco significa o fim da lei caso não aconteça. No Congresso Nacional e no Executivo, mesmo com a previsão, há poucas movimentações para revisar a lei.
As primeiras iniciativas de ações afirmativas remontam aos anos 1990. Protagonizadas por movimentos da sociedade civil organizada, as ações eram voltadas à educação de alunos de baixa renda e afrodescendentes (CAVALCANTI et al, 2020)1. Anos depois, em 2003, a Universidade do Estado do Rio de Janeiro protagonizou a adoção de cotas para o ensino superior no país, fruto da Lei Estadual nº 4.151/2003. Ainda assim, a consolidação deste tipo de política afirmativa só se deu cerca de 10 anos depois, em 2012, após decisão unânime do Supremo Tribunal Federal pela constitucionalidade das cotas, questionada pelo partido Democratas.
Por que as cotas são importantes?
As políticas de ações afirmativas tornaram possível a presença de membros de grupos minorizados no ambiente acadêmico, reduzindo a discrepância de oportunidades disponíveis entre estudantes brancos e ricos e as pessoas marginalizadas.
É importante que o aspecto histórico seja considerado no processo de revisão e avaliação da Lei de Cotas. As cotas têm o papel de reparação histórica e enfrentamento do racismo, permitindo que as barreiras anteriormente impostas pela condição de segregação sejam atenuadas.
Segundo o informativo Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil, produzido pelo IBGE no ano de 2019, o número de jovens de 18 a 24 anos matriculados no ensino superior era de 50,5% em 2016, passando para 55,6% em dois anos.
O aumento no percentual tem relação com a Lei de Cotas, que foi diretamente responsável pela conquista do primeiro diploma de educação superior em diversas famílias.
Tendência atual de revisão
Há quem apresente resistência em reconhecer os avanços da Lei. Assim, tem quem se apoie na narrativa de que há um menor grau de cobrança em processos seletivos para alunos cotistas, o que afetaria a qualidade do ensino no país. Outro argumento comum é que as cotas deveriam atender apenas pessoas de baixa renda, excluindo as pessoas negras da política pública.
O primeiro argumento foi descredibilizado por diversos estudos, como a pesquisa2 publicada pelo Insper em 2021, que confirma a não redução do padrão acadêmico em universidades federais. Já o segundo argumento acaba por ignorar anos de desigualdades raciais e escravização, que geram passivos inegáveis para pessoas pretas.
A atual legislatura parece ignorar grande parte desses pontos. Em junho de 2022, a Associação Brasileira de Pesquisadores Negros realizou um levantamento sobre matérias legislativas no Congresso Nacional que propõem a alteração da Lei de Cotas. Foram identificados 67 projetos, dos quais: 31 afetam a reserva de vagas para negros; 20 propõem a ampliação das reservas de vagas já previstas na normativa; e 16 tratam aspectos não relacionados à reserva de vagas, como programas de assistência financeira para cotistas.
Caminhos para revisão
O poder público deveria estar neste momento formulando caminhos para a garantia e o aprofundamento da Lei de Cotas. Políticas de incremento da empregabilidade para ex-beneficiários servem como exemplo de aspecto fundamental para redução de desigualdades. Atualmente, as cotas já significam uma maior probabilidade de ingresso no mercado de trabalho em melhores condições. Entretanto, estudos recentes já apontam que as cotas não necessariamente levam os ex-beneficiários a ganharem melhores salários.
Outra possível revisão seria a incorporação das cotas também em cursos de pós-graduação e incentivos para que instituições de ensino privadas adotem ações afirmativas em seus processos de ingresso. Exigências da participação de minorias em altos cargos de gestão, seja em organizações públicas ou privadas, também são exemplos de políticas que podem aprofundar o impacto da atual Lei de Cotas.
Contudo, a responsabilidade nesse caso não pode recair apenas nos legisladores. A compreensão dos setores privado e público da importância de processos de seleção mais inclusivos e, inclusive, da adoção de cotas raciais para contratações é um caminho a ser perseguido.
As empresas, especificamente, devem adotar práticas antidiscriminatórias em suas agendas de atração e retenção. A formação aliada a redução de desigualdades não pode depender apenas do poder público.
Lobby pelas cotas
As organizações têm responsabilidade de se posicionar frente às questões sociais e garantia de direitos, especialmente para minorias. A estratégia não deve se limitar apenas a discretas publicidades em meses de representatividade. Também não pode ser distanciada de iniciativas de movimentos sociais e da sociedade civil, que hoje são quem de fato fazem lobby pela preservação e ampliação da política de cotas.
O contexto político para a defesa de interesses também é ponto chave para articulação e incidência na formulação e revisão de políticas públicas. Em vista disso, há o entendimento de parte relevante dos movimentos sociais e da sociedade civil organizada de que a revisão da Lei de Cotas agora poderia significar retrocessos. O lobby também é a estratégia da não ação, especialmente se a disputa é desfavorável.
A respeito da revisão da Lei de Cotas, a ausência de pessoas pretas como mobilizadores e interlocutores é atualmente o principal empecilho tanto para o aprimoramento das cotas quanto para a mobilização em defesa dessas políticas. Dessa forma, o robustecimento de lógicas sociais inclusivas passa pelo aumento de representação política desses grupos em instituições democráticas no poder público em esferas federais, estaduais e municipais.
Assim, podemos considerar que um dos elementos da degradação de direitos está relacionado à percepção deturpada da eficácia e importância de políticas públicas que atendam grupos distintos da fotografia congressual. Logo, no curto prazo, acredita-se que o lobby de representações de classe deve direcionar esforços na garantia de direitos já consolidados. Em médio e longo prazo, o esforço deve ser aplicado na construção de maior representatividade de grupos minorizados em espaços de poder para que haja conexão entre a política pública inclusiva e a ação cotidiana do representante eleito.
1 Cavalcanti, M. A., de Siqueira, V. H. F., & da Silva, A. C. (2020). POLÍTICAS PÚBLICAS EM EDUCAÇÃO A EMERGÊNCIA DO DISPOSITIVO DAS COTAS RACIAIS. Revista Valore, 5, 5014.
2 “As cotas nas universidades públicas diminuem a qualidade dos ingressantes?”.
Disponível em: https://publicacoes.fcc.org.br/eae/article/view/4427
Autores
Andrei Gomes
Bacharel em Relações Internacionais pela Universidade de São Paulo (USP) e pós-graduando em Gestão Pública pelo Insper. Atualmente, é analista de Relações Institucionais e Governamentais na TOTVS.
Laura Xavier
Bacharel em Relações Internacionais pela Universidade Católica de Brasília (UCB) e pós-graduada em Marketing e Comunicação Digital pelo IESB. Atualmente, é mestranda em Política Públicas pelo Insper.
Raiane Paulo
Bacharel em Ciência Política pela Centro Universitário do Distrito Federal (UDF), especialista em Análise e Marketing Político pela Faculdade Republicana e MBA em Gestão Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas (FGV). Atualmente, é coordenadora de Relacionamento com o Poder Público da Oficina Consultoria.
Thiago Messias
Bacharel em Direito e Graduando em Gestão Pública na Fundação Getúlio Vargas. Atualmente é especialista em Políticas Públicas no Ifood.