As eleições representam para a política nacional momentos de mudanças de atores, pautas, prioridades e agendas. Para quem trabalha com relações governamentais e institucionais, em contato direto com essas autoridades, as alterações também exigem mudanças. É preciso rever estratégias e formas de abordagem para manter o diálogo e continuar a defender os interesses dos mais diversos setores da sociedade.
As urnas desenharam um cenário ideologicamente complexo, com um Executivo com matizes do que se conhece como esquerda e um Legislativo de maioria conservadora. Essa aparente contradição pode trazer dificuldades aos profissionais de RelGov.
Para Helena Matos, advogada e especialista em Relações Institucionais e Governamentais no Di Blasi e Parente Associados, a divergência político-ideológica é natural em democracias liberais, sobretudo em um sistema presidencialista, como o brasileiro. “Certamente, ambientes uníssonos viabilizam a ocorrência de determinados processos e discussões de forma mais fluida. Entretanto, a não homogeneidade per si não deve ser um problema, mas um elemento que compõe o cenário político e é entendido pela maioria de seus atores como superável, em prol da governabilidade e do andamento das políticas. É inerente ao exercício de um profissional de RelGov a capacidade de trânsito e diálogo entre Poderes, espectros, ideologias e entendimentos.”
O cenário político brasileiro tem se mostrado desafiador para a definição das estratégias de engajamento de relações governamentais com os diferentes Poderes. Essa avaliação é baseada nas mudanças ocorridas nos últimos anos, explica o diretor de Relações Governamentais e Políticas Públicas para dez países na América Latina da Kyndryl, Andriei Gutierrez. “Além da tradicional polarização política, muito evidenciada nas eleições, também tem havido uma mudança na correlação de forças entre os Poderes, sem precedentes na recente história republicana. É notável o aumento do protagonismo do Congresso Nacional nas principais agendas do país, em detrimento do Poder Executivo. O Executivo tem dependido cada vez mais da colaboração do Congresso para elaborar políticas públicas, inclusive nas esferas mais técnicas, até então reservadas aos técnicos dos ministérios.”
Felipe Cardoso, supervisor na área de Relações Institucionais e Governamentais com foco no relacionamento com o Poder Legislativo da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), acredita que haverá diálogo e janelas de oportunidades para as agendas de interesse. “Mas o cenário requer dos profissionais muito cuidado com as informações transmitidas e os ambientes em que se transita. Em momentos de mudanças de cenário político, julgo importante mapear bem os atores e avaliar os perfis políticos, de forma a identificar interesses e os espaços de decisão que esses atores ocupam.”
Para a diretora de Relações Públicas na Oficina Consultoria, Beatriz Gagliardo, o tabuleiro de xadrez está posto e o trabalho de defesa de interesses seguirá sempre dentro das quatro linhas legítimas da atividade. “A depender de sua pauta de defesa de interesses e da pauta prioritária de governo, considerando a convergência ou divergência, o profissional terá maior ou menor facilidade de emplacar seu tema na mesa de discussão e angariar votos para avançar na direção que deseja. E, assim, valer-se em maior ou menor grau de ferramentas importantes para avançar a agenda, como o desenvolvimento das mensagens-chave, dentre outras.”
Essa mudança de chave emprestou ainda mais importância às habilidades de negociação. A busca do diálogo e do consenso tornam-se essenciais, de acordo com o diretor da Kyndryl, que vê o profissional de relações governamentais como um grande construtor de pontes. “No contexto atual, de nova correlação de forças entre os Poderes, o desafio é o de dialogar, de um lado, com os parlamentares, seus assessores, e, do outro, com técnicos e autoridades do Poder Executivo. A escuta efetiva e o exercício da empatia também tornam-se fundamentais”, afirma Gutierrez.
“Essas habilidades sempre foram importantes”, observa Beatriz Gagliardo. “A diferença é que, agora, temos uma base de Congresso muito polarizada, com interesses políticos nítidos, que vão além da ideologia política, que parece estar dançando uma música própria para seu próprio fortalecimento político-partidário, vislumbrando as eleições de 2024 e 2026. Isso certamente faz com que o profissional amplie esse olhar estratégico, considerando todo o mapa de
stakeholders e entendendo qual será a abordagem e a negociação utilizada para cada parlamentar ou grupo político, com objetivo de avançar ou até mesmo neutralizar um pleito específico.”
Helena Matos lembra que a dissonância ideológica é natural dentro da realidade dos profissionais brasileiros de RelGov. Entretanto, soft skills atreladas à maior maleabilidade, capacidade de diálogo, de comunicação não violenta e negociação ganharam espaço. “Profissionais imbuídos de técnica, expertise no issue, valores republicanos que norteiam a atuação e habilidades de composição em que todos saem vencedores se destacam. O momento é propício para profissionais técnicos e comprometidos em ganhar espaço rumo à qualificação de debates sérios e, simultaneamente, amistosos e pacíficos.”
Esse distanciamento entre Executivo e Legislativo prejudica o andamento das pautas e o estabelecimento de políticas públicas, tão necessárias para o desenvolvimento da nação. De acordo com Beatriz Gagliardo, essa situação certamente cria dificuldades, pois ideologicamente há um Senado mais à direita e um Congresso com um centro muito forte, e o presidente da República, do PT, optou por uma composição ministerial não necessariamente ligada ideologicamente ao núcleo. “Isso faz com que pautas com maior liberalismo econômico possam ser impactadas, quando o governo se volta a uma maior estatização e intervenção do Estado. Saúde e educação estão sob atenção do governo e podem entrar na berlinda desse debate.”
Para Helena Matos, “o fato de o partido da situação no Governo Federal não deter maioria no Congresso Nacional, por uma lógica simples, demanda mais tempo de articulação em matérias de interesse nacional”. Não possuir maioria no Legislativo, diz ela, transforma-se em fator de atenção à governabilidade e à implementação de pautas centrais, porém não chega a ser um impeditivo. “Mais uma vez, o melhor caminho para uma representação eficiente de interesses é a presença de profissionais tecnicamente preparados ao diálogo sóbrio e bem parametrizado.”
Já a chefe da Assessoria de Relações Institucionais e Governamentais (ARIG) da Embrapa, Cynthia Cury, crê, na verdade, que há um forte diálogo acontecendo na busca de consolidação de uma base de sustentação e governabilidade. “A tramitação legislativa fica no aguardo dessa consolidação, o que dificulta definições de políticas públicas estratégicas e relevantes, como a da reforma tributária.”
Para uma nova realidade, novos remédios. Não há como negar que a atividade de defesa de interesses tenha que incorporar novas estratégias e ferramentas. Encontros presenciais e almoços ainda são relevantes, mas perdem cada vez mais espaço. “Não se faz mais lobby como antigamente, quando bastavam contatos pontuais, um a um, para que as pautas avançassem. Num cenário conectado e em rede, a ação de public affairs, que une as relações governamentais com as ferramentas de comunicação direcionada e estratégica, torna-se imprescindível”, explica Gagliardo, para quem a atividade, hoje, é multifacetada. “O profissional precisará olhar e entender o mapa de stakeholders em sua correlação de forças e influência, direcionar mensagens-chave e storytelling na defesa de interesses, ter acesso ao social media listening, e se valer de artigos e notícias na mídia para levar determinado tema a debate, trabalhar fortemente a reputação para acessar diversos players no governo e, principalmente, atuar dessa forma para antecipar e neutralizar possíveis crises.”
Andriei Gutierrez, diretor da Kyndryl, ressalta que as redes e mídias sociais ganharam grande relevância nos debates das pautas do país, o que leva as estratégias de advocacy a passarem a incluí-las no planejamento. “Sou daqueles que acredita muito no poder das agendas positivas, sempre aliadas a uma efetiva estratégia de conscientização, engajamento e mobilização por meio das mídias sociais. É cada vez mais importante que profissionais de relações governamentais saibam lançar mão dessas ferramentas.”
Ele cita aplicativos como o WhatsApp ou o Telegram, usados não apenas para tornar a comunicação mais rápida, mas também para monitorar temas e pautas, composição e articulação de alianças e até mesmo para atividades de advocacy e convencimento. “No cotidiano, as ferramentas de reuniões virtuais também têm facilitado nossas atividades, em especial depois da pandemia. Num país com dimensões continentais como o Brasil, reuniões por videoconferência são um grande facilitador para a construção de alianças e o alinhamento de pautas entre diferentes atores.”
Gutierrez destaca, ainda, as mídias sociais, sobretudo no trabalho de construção de agendas positivas. Ele aposta no posicionamento nas redes sociais, tanto por meio de uma estratégia individual dos profissionais de relações governamentais, quanto de estratégias corporativas. “É muito importante que ambos tenham uma estratégia de comunicação e posicionamento nas redes, com foco na audiência, e uma elaboração frequente e coerente de temas específicos.”
Felipe Cardoso, ressalta os sistemas de monitoramento legislativo. “É bom investir em um software que faça esse acompanhamento. Outros pontos consistem em elaborar bons materiais de comunicação e organizar a agenda de interesses conforme suas prioridades, impacto e urgência.”
E as agências regulatórias, poderiam ganhar mais poder e autonomia no novo cenário? Neste primeiro momento, Beatriz Gagliardo não vê esse movimento. “As agências estão sob ataque. A primeira medida do governo foi frear a adesão do Brasil à Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), e um dos pontos fundamentais para essa adesão era o avanço das boas práticas regulatórias, que estava acontecendo em algumas agências. Existe um cabo de guerra entre, de um lado, tornar as agências independentes, fortalecendo-as, deixando sua atuação mais técnica, e, de outro, esvaziar suas competências. No entanto, a MP 1.154 e a Emenda 54, que retiram das agências os poderes de regular e editar atos normativos, estão na mesa do Congresso Nacional. Enquanto essa briga política não se define, atuar no advocacy regulatório junto às agências é fundamental para a busca da segurança jurídica e do equilíbrio regulatório do negócio para o qual o profissional de RelGov defende o interesse.”
Já Helena Matos, do Di Blasi, Parente & Associados, acha que os profissionais de RelGov devem se aproximar cada vez mais do direito regulatório. “Como advogada, vejo com clareza como a regulação é inescapável ao fluxo das novas atividades e como vai aumentar a demanda por intercâmbio entre o empresariado e as agências de regulação. Para uma economia saudável, é fundamental que desenvolvamos um ambiente regulatório promissor, no qual o Estado cumpra sua função, sem obstaculizar o crescimento das atividades econômicas, de modo que os setores possam efetivamente compreender as normas que o regulam e se desenvolver.”
A regulamentação da atividade de defesa de interesses, também conhecida como lobby, está há anos em tramitação no Congresso Nacional – no momento, encontra-se no Senado. Acena com transparência e regras a serem seguidas. Sairá do papel? Cynthia Cury considera fundamental sua aprovação. “A regulamentação da atividade assegurará mais transparência e equidade na relação da sociedade e do mercado com o poder público, especialmente neste momento de nova legislatura no Congresso Nacional e de um novo Governo Federal.”
De acordo com o diretor da Kyndryl, é muito importante que se avance na regulamentação do lobby no Brasil, de modo a trazer garantias e estabelecer deveres de forma razoável e plural. “Mas tudo deve ser feito de maneira a garantir isonomia entre atividades de lobby tanto do setor privado, quanto do setor público, da academia e da sociedade civil. Do mesmo modo, é relevante que se tenha uma lei plausível e razoável, de modo a trazer segurança jurídica, inclusive para os profissionais de relações governamentais poderem atuar.”
Helena Matos avalia que as estratégias de atuação de RelGov não se alteram por conta de eventual regulamentação ou não. “A regulamentação do lobby se enquadra no bojo da profissionalização da representação de interesses, com criação de regras que contribuam para essa atividade. Seguem sendo metas a serem alcançadas a melhor qualificação técnica dos atores envolvidos e capacidade de negociação pautada em valores e propósitos – tanto constitucionais como da empresa/pessoa representada.”
Novos tempos trazem boas oportunidades, observa Cynthia Cury, da Embrapa. “A nova realidade nos traz a oportunidade de conhecer novas lideranças e interagir nas agendas com temas comuns. Conhecer os stakeholders e as suas agendas de prioridades é um importante caminho para se adequar aos desafios que virão.” Beatriz Gagliardo opta por uma mescla de estratégias. “Temos buscado sempre incrementar as ferramentas de RelGov e public affairs, aliando tecnologia, inteligência política e análises assertivas para o refinamento das estratégias recomendadas e a atuação de nossos clientes. O rápido olhar é crucial para uma política em constante e rápida mudança.”