Quais são os desafios, enquanto profissional negro, vivenciados no mercado de relações institucionais e governamentais?
Adilson Marques – A falta de igualdade de oportunidades na formação e capacitação torna mais difícil o ingresso de pessoas negras nesse mercado. Entretanto, políticas como o sistema de cotas nas universidades federais e os programas de financiamento estudantil têm contribuído para transformar esse cenário.
Dayana Morais – Eu acho que o principal desafio é estar constantemente desafiando estereótipos: sobre sua capacidade intelectual, sobre sua trajetória profissional, sobre sua posição ideológica e sobre como você “chegou até lá”. Como em qualquer outro espaço de poder, a sua negritude chega antes do que qualquer outra coisa, e as pessoas já partem de ideias pré-concebidas sobre qual a sua pauta de atuação. E, muitas vezes, você se posicionar é lido como você ser uma pessoa negra raivosa — ainda mais se for uma mulher negra.
Josiara Diniz – São muitos os desafios, mas posso colocar como principal o racismo institucional (que não é exclusivo do mercado de relgov). A máxima de ter que se esforçar o dobro/triplo; de não ser considerado para as vagas porque está fora das rodas de amizade majoritariamente brancas; ser julgado pela aparência, previamente, como um não profissional. A chamada “passabilidade” que a pessoa branca tem nos espaços é um desafio dado, que implica não sermos nem considerados para determinados espaços.
Maiara Oliveira – O mercado de RIG é historicamente elitizado, branco e masculino. Enquanto uma profissional negra, corriqueiramente enfrentamos os estereótipos sobre capacidade técnica ou competência de estar nesses espaços como um igual aos demais pares. Esse status quo de não pertencimento dos corpos não convencionais a esses espaços dificultam que profissionais negros e indígenas acessem e estabeleçam uma boa rede contatos e consigam oportunidades profissionais de liderança.
Tamiris Villarinho – Um dos principais desafios é o sentimento de não pertencimento. Mesmo após dez anos de carreira e diversas conquistas, noto que, à medida que os profissionais da área avançam em senioridade, suas experiências e vivências pessoais se distanciam cada vez mais da minha realidade. Isso pode gerar uma sensação de isolamento, que é ao mesmo tempo intimidadora e desafiadora. Apesar disso, encaro esse desafio como uma oportunidade de promover resiliência e transformação, tanto em minha trajetória quanto no ambiente ao meu redor. A pluralidade precisa estar presente não apenas na base, mas em todos os níveis hierárquicos. Ter líderes e executivos negros envia uma mensagem poderosa ao estagiário, ao júnior e ao pleno: existe espaço para você. Suas ambições são plenamente possíveis!
Você já sofreu algum preconceito na sua carreira de relgov? Se sim, como enfrentou a situação?
Adilson Marques – Embora o Brasil seja um país diverso, o racismo estrutural ainda está presente em diversos setores, inclusive na nossa profissão, que envolve espaços de poder. Em situações de preconceito, consegui agir de forma a evidenciar o problema, garantindo que a atitude fosse corrigida e o tratamento ajustado, não apenas em relação a mim, mas também para evitar que outros enfrentassem a mesma situação.
Dayana Morais – Já. E muitas vezes esses preconceitos vêm associados a esses estereótipos que citei. Algumas vezes, mais sutis, como a invisibilidade seletiva de algumas autoridades, quando uma pessoa negra está no recinto; e outras, mais atrelada ao acesso aos prédios públicos. Não acredito muito nessa ideia de enfrentar a situação. A gente se acostuma, se posiciona, questiona e denuncia quando possível, mas seguimos entregando resultados — é geralmente a melhor resposta.
Josiara Diniz – Sim. Já sofri tanto no meu começo de carreira, quanto agora em um cargo sênior (mais de uma vez). Quando eu era jovem tinha poucas ferramentas, mas agora eu tento institucionalizar o crime. Mesmo que não “dê em nada”, quero deixar claro que tal pessoa/instituição foi racista/LGBTfóbica.
Maiara Oliveira – Sim, já enfrentei situações de preconceito que se manifestaram de forma direta, como questionamentos sobre a presença em algum espaço de decisão, ou de forma velada, como a apropriação de ideias sem os devidos créditos. Nesses momentos, o apoio de colegas que experienciaram algo similar ou mesmo espaços de acolhimento, como o Coletivo Pretas e Pretas em Relgov, é fundamental. Assim como buscar apoio em colegas brancos/as que compartilham valores de equidade e diversidade.
Tamiris Villarinho – A palavra preconceito tem muitas conotações e camadas. Acredito que seja difícil encontrar uma pessoa preta que não tenha vivenciado algum tipo de preconceito no ambiente profissional. Por vezes, notei que meu currículo causou surpresa em alguns recrutadores, como se fosse inesperado que uma pessoa preta pudesse ter construído uma trajetória como a minha.
Quais práticas, de acordo com sua experiência profissional, podem tornar o ambiente ou a instituição mais equânime e realmente acolhedora para profissionais negros?
Adilson Marques – Além de contratar pessoas negras, é fundamental criar um ambiente que as acolha e faça com que se sintam pertencentes. Um exemplo disso é a implementação de grupos de afinidade, onde profissionais negros podem trocar experiências e discutir desafios do cotidiano e da profissão.
Dayana Morais – Ter mais pessoas negras em papéis de alta liderança e ter mais pessoas brancas dessas lideranças que tenham letramento racial. Mais importante do que ter pessoas negras se tornando referência no campo e construindo novas narrativas profissionais para pessoas negras, é necessário que as organizações estejam dispostas a terem conversas desconfortáveis sobre como a equidade racial é um desafio gigante que se faz presente no ambiente profissional, mesmo em organizações sociais que pautam essa temática. A assimetria de poder de lideranças negras com lideranças brancas continua sendo comum, e não é possível construir um ambiente acolhedor sem revisar como microagressões limitam e invisibilizam dores de pessoas negras dentro do ecossistema.
Josiara Diniz – O primeiro de tudo é incluir. O primeiro passo para o letramento racial, o que tantas organizações têm buscado, é incluir profissionais negros nos quadros de colaboradores. Não adianta fazer palestra/cartilha/homenagem, sem movimentos claros de inserção do profissional negro.
Maiara Oliveira – É primordial que os espaços que se propõem a romper com esses estereótipos desenvolvam de forma efetiva programas de mentoria e capacitação para lideranças negras, assim como incluam como valor e missão a promoção de conscientização sobre vieses inconscientes e práticas discriminatórias.
Tamiris Villarinho – Oportunidade, acolhimento, mentoria e investimento. Em primeiro lugar, acredito que as empresas precisam se comprometer a recrutar pessoas pretas. Em seguida, é essencial acolher essas pessoas, garantindo condições que favoreçam sua permanência em um ambiente que reconheça e valorize talentos vindos de trajetórias diversas, incluindo aqueles que não estudaram em escolas tradicionais. Além disso, é fundamental oferecer mentoria para que essas pessoas desenvolvam habilidades que podem não ter sido naturalmente acessíveis em suas jornadas. Por fim, investir no desenvolvimento de competências complementares para tornar pessoas pretas elegíveis a espaços de liderança.
Nos últimos anos você percebeu alguma evolução na redução do preconceito na atividade de relgov?
Adilson Marques – Não percebi uma redução significativa do preconceito, mas notei um aumento no número de profissionais negros atuando na área. Contudo, ainda são poucos os que ocupam cargos de liderança.
Dayana Morais – Não sei dizer se houve uma redução do preconceito, mas percebo que houve um aumento de organizações sociais que começaram a assumir estratégias de advocacy como parte central da sua atuação — e acredito que isso tenha a ver com a capacidade de impacto dessas ações.
Josiara Diniz – Não consigo mensurar se houve uma diminuição do preconceito, mas observo que as pessoas conseguem nomear melhor as violências que sofrem. Os grupos de afinidade (seja por gênero, raça e/ou orientação sexual) são um passo essencial nessa evolução.
Maiara Oliveira – Sim, especialmente após o fortalecimento de movimentos sociais e debates públicos sobre diversidade, bem como um maior número de profissionais negros com ensino superior na última década e inseridos no mercado de RIG. Assim, com o quadro de profissionais das empresas e instituições começando a ficar mais diverso, esses espaços passaram a adotar políticas de inclusão mais robustas, e há maior conscientização sobre a necessidade de representatividade. No entanto, os avanços ainda são iniciais, e a prática precisa acompanhar o discurso para que mudanças significativas ocorram.
Tamiris Villarinho – Sinto que nossa evolução como sociedade é muito marcada por avanços e retrocessos — um passo à frente e dois para trás. As empresas acabam refletindo esse fluxo, já que esse processo depende, em última análise, das pessoas. Apesar disso, percebo que o povo preto tem avançado significativamente, conhecendo melhor quem somos e o que somos capazes de realizar. Além disso, acredito que estamos aprendendo a importância de contar uns com os outros. É exaustivo ter que se posicionar constantemente — e entenda isso como estar sempre preparado para tudo. Ainda assim, penso ser esse o caminho, pois ele depende exclusivamente de nós, povo preto, e não de uma mudança no outro.
De que forma as instituições de classe e coletivos podem contribuir para tornar o ambiente de RIG mais igualitário e diverso?
Adilson Marques – Essas entidades desempenham um papel importante ao facilitar o ingresso e a capacitação de profissionais negros no mercado. Além disso, são espaços essenciais para promover debates sobre a relevância da representatividade e da diversidade na nossa profissão.
Dayana Morais – Acredito que, para além de contratar mais profissionais negros, formar mais profissionais, para que possam assumir papéis estratégicos dentro dessas ações. Também construir ações intencionais de diversificação dos conselhos administrativos e direcionar verba para desenvolver profissionais não negros sobre a temática. Vejo com muitos bons olhos coletivos como o Pretas e Pretos em Relgov, que gera referência, trocas e apoios para lideranças negras dentro da área de relgov. Precisamos construir mais oportunidades de reconhecer quem são as lideranças negras de relgov que já estão mudando esse cenário.
Josiara Diniz – Penso que o primeiro passo é não tratar como tema de nicho. Não é uma data ou um mês incluir mulheres e negros e conversar com a maioria da população, logo não é algo de prateleira. É preciso pensar em uma política de inclusão que seja tão ampla quanto os preconceitos que precisamos enfrentar. É preciso, para além disso, incluir-se como parte da solução e não terceirizar essa gestão “para os profissionais negros da organização”. Se todos somos os causadores/reprodutores de preconceitos, todos somos solução.
Maiara Oliveira – É necessário fomentar mais espaços de diálogo, não apenas para debater as experiências das pessoas negras nesse mercado, mas também para garantir que elas atuem como influenciadores no debate público, independentemente do tema em discussão.
Tamiris Villarinho – Os coletivos desempenham papel fundamental na oferta de espaço para que grupos historicamente silenciados possam falar e serem ouvidos, rompendo com o silêncio da sobrevivência. Além de amplificar essas vozes, penso que os coletivos também são ambientes de reconhecimento, onde as pessoas encontram seus iguais; de desenvolvimento, promovendo troca de experiências e criação de oportunidades; e de luta, desempenhando um papel essencial na busca por espaços de ocupação e representação.
Que mensagem você gostaria de deixar para profissionais negras e negros que atuam em relgov?
Adilson Marques – Não desistam! Busquem coletivos, instituições e profissionais experientes comprometidos com a representatividade e a transformação do cenário atual. É possível que uma pessoa preta possa avançar e crescer cada vez mais na área.
Dayana Morais – Construa sua rede de contatos e sua comunidade, que vão sempre te apoiar nos diferentes desafios que você pode encontrar no caminho. Grande parte das vezes, a resiliência do seu dia a dia profissional vem de construir vínculos com profissionais que reconhecem os mesmos desafios que você no campo.
Josiara Diniz – Confie em você e cuide da sua cabeça. O racismo não é problema nosso, logo não daremos conta dele sozinhos. Invista na sua formação e nas suas habilidades. Escute bons profissionais (e isso não tem a ver com status de carreira ou nível) e esteja aberto a mudanças.
Maiara Oliveira – Nosso papel no mercado de RIG vai além de abrir portas para nós mesmos: é sobre pavimentar caminhos para as próximas gerações, para que elas possam almejar e conquistar seus espaços profissionais. Para isso, cultivar redes de apoio e se aproximar de referências é crucial. A sua história e vivência têm um impacto transformador em qualquer debate/discussão, então use-as a seu favor. Sua presença e análise sobre determinada agenda pública pode ser um agente de mudança para tornar o mercado mais justo e igualitário.
Tamiris Villarinho – Você pode! Sim, você é bom o suficiente. Existe espaço para você com as ferramentas que já possui. É possível aprender algo novo e completamente desconhecido. Está tudo bem não ter as mesmas experiências que eles; o que importa é você estar comprometido a ser excelente no que faz. Não vai funcionar tentar ser algo que você não é.