Confira a matéria sobre A prática de RelGov e a internacionalização das empresas, de Larissa Wachholz, Vice-Presidente do IRELGOV.
Breves comentários sobre o caso chinês
Fator não-mercadológico ainda pouco estudado nas teorias de internacionalização de empresas, a atividade de relações governamentais é de grande relevância para a atuação das multinacionais. Legislação, política industrial, licenças, tarifas, contenciosos, financiamentos subsidiados e preços controlados são alguns exemplos dentre muitos de temas correntes no cotidiano de multinacionais que exigem ação estratégica da área de relações governamentais.
É interessante notar que o papel da interlocução governamental, ao contrário do que pode parecer à primeira vista, não se resume ao estágio inicial de abertura de portas para o estabelecimento da empresa no país estrangeiro, podendo ser igualmente crucial para o desenvolvimento e expansão de seus negócios no exterior. A área de relações governamentais pode ser, portanto, peça-chave no esforço de estabelecimento em um novo mercado, e as equipes precisam estar preparadas.
O grau de participação do Estado na economia varia muito entre os países e pode custar caro às empresas. Pesquisa de 2013 da consultoria McKinsey Company[1] estimou em 30% do EBITDA o custo potencial da intervenção governamental ou regulatória, para a maior parte das empresas. Em alguns setores, como o bancário, o valor pode chegar a 50%. O Brasil está entre os países em que há grande presença estatal no cotidiano das empresas, mas há casos também entre os desenvolvidos: Estados Unidos, União Europeia e Japão, por exemplo, fazem uso de normas técnicas e artifícios sofisticados para proteger seus mercados de produtos importados.
A Ásia, com toda sua complexidade social, política e econômica, exige dos executivos de relações governamentais habilidade e sensibilidade para promover e defender interesses das multinacionais em sistemas políticos diversos, com religiões tão diferentes quanto budismo, hinduísmo, cristianismo e islamismo, economias ricas e pobres, cidades-nação e países continentais. Noções de multiculturalismo e geopolítica são fundamentais.
Segunda maior economia do mundo, a República Popular da China é, de acordo com o World Investment Report 2016 publicado pela UNCTAD (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento), o terceiro maior destino de investimento estrangeiro no mundo, atrás apenas de Estados Unidos e Hong Kong. A China é, ainda, o terceiro maior país investidor, depois de Estados Unidos e Japão. O enorme mercado potencial da população de mais de 1,3 bilhão de habitantes, além da infraestrutura desenvolvida e eficiente que é chave para a redução dos custos de produção, estão entre os fatores que tornam a China um grande destino de investimentos estrangeiros apesar do grau de complexidade de seu ambiente de negócios.
A China é um país com características muito próprias de governo. Os rumos da economia, e por consequência dos negócios, são traçados em planos quinquenais que apontam a direção em que as diferentes indústrias deverão caminhar. Primeiramente, é lançado um planejamento geral, o Plano Quinquenal, cuja 13ª edição está em vigor e cobre o período até 2020. Feito isso, são lançados planos setoriais detalhados – sobre a economia de energia, o desenvolvimento do comércio eletrônico, as energias renováveis, as prioridades de investimento externo, entre muitos outros temas. Uma multinacional com ambições de operar na China precisa ter plena compreensão do direcionamento governamental para seu setor.
Uma estratégia bem elaborada de internacionalização para o mercado chinês precisará incluir esforços de interlocução governamental ao longo de toda a atuação da empresa naquele país. Normalmente, a interlocução tem início no país de origem da multinacional. As informações disponibilizadas a partir do relacionamento entre os governos nacionais podem originar oportunidades para empresas que desejem se internacionalizar – atuação sadia e absolutamente legítima de um Estado em relação às corporações originárias de seu país. Para além da troca de informações que geram inteligência de mercado para a empresa, em muitos casos a atuação governamental é decisiva para a concretização ou não de vendas internacionais. É o caso, por exemplo, do setor da aviação: mesmo que vendedor e comprador estejam de acordo sobre a transação, uma gestão governamental pode ser necessária para concretizar a venda, por se tratar de setor visto como estratégico na China. Não por coincidência, é comum que sejam anunciadas vendas de aeronaves em visitas de Estado.
Empresas europeias estabelecidas na China gerem parte de seu relacionamento governo-empresa a partir de uma associação, The European Union Chamber of Commerce in China, e empreendem esforços individuais e coletivos junto aos seus respectivos governos e ao governo chinês com o objetivo de facilitar a entrada de investimentos europeus no país asiático, cobrando reciprocidade no tratamento dado aos investidores – não há regulamentação restringindo investimentos chineses na Europa em setores como bancário, automotivo e de infraestrutura crítica, ao passo que o governo chinês proíbe ou regula fortemente investimentos estrangeiros nestes setores em seu país.
Ao que tudo indica, a prática de relações governamentais de multinacionais com cadeias de suprimentos que incluam em alguma ponta a China e os Estados Unidos se manterá bastante ocupada ao longo dos próximos anos. O novo Presidente norte-americano pretende rever as tarifas de importação de algumas categorias de produtos chineses, como aço e agroindústria. Uma de suas mais importantes promessas de campanha é levar fábricas de volta aos Estados Unidos e recriar empregos, sob o argumento de que foram perdidos para a mão de obra barata chinesa, quando na verdade foram perdidos para a tecnologia e a automação. Será um desafio para as empresas manter uma boa interlocução com ambos os lados – EUA e China – para a promoção e defesa de seus pontos de vista.
As considerações anteriores demonstram claramente que a definição e implementação de uma estratégia política eficaz é elemento não-mercadológico fundamental para o sucesso da atuação internacional de empresas de diversos segmentos. A China se destaca, nesse contexto, por ser um dos maiores mercados do mundo e por ter um ambiente de negócios particularmente complexo. A complexidade, contudo, não é uma exclusividade chinesa e se manifesta em diferentes graus na maior parte dos mercados importantes do mundo. É reconfortante pensar que navegar em ambientes de negócios complexos é uma arte que profissionais de relações governamentais dominam bem. Trata-se de uma categoria profissional habituada a sair de sua zona de conforto.
Larissa Wachholz – especialista no mercado chinês. É sócia da boutique de negócios Vallya, sócia-fundadora e Vice Presidente (2016/2018) do Instituto de Relações Governamentais – Irelgov e professora no MBA em Relações Institucionais do IBMEC.
JOTA – Às claras
Publicado em 09/02/2017