EDITORIAL

Esta edição da revista Diálogos traz uma reportagem muito especial: como a tecnologia influencia na vida política de nosso país. Convidamos três especialistas renomados para dividirem seu conhecimento com nossos leitores. As conversas, verdadeiras aulas, deixaram muito claro que as tecnologias abrem mais possibilidades do que imaginamos, desde a simples propagação de ideias à capacidade de influenciar o eleitor, muitas vezes sem que ele perceba. Isso leva a sociedade a uma necessidade urgente de debater formas de controle do uso da tecnologia, que podem chegar a colocar em risco o mundo do jeito que o conhecemos.  

Nos artigos, a tecnologia continua sendo a estrela da pauta. O leitor verá como sistemas podem identificar tendências e variáveis em projetos de lei que são aprovados, os benefícios da digitalização de processos judiciais e administrativos para a advocacia de relações governamentais, e um panorama do mundo futurista que os avanços estão construindo em Dubai e Abu Dhabi.  

Nossos articulistas também abordam as alternativas que se abrem com o novo papel da China no comércio internacional.  

Boa leitura!  
Gisela Antakly e Thomaz D’Addio

NESTA EDIÇÃO

COLUNA RADAR

Aberta a venda de ingressos early bird para o III Congresso Internacional do IRELGOV 

II CONGRESSO INTERNACIONAL IRELGOV
FOTO: THIAGO RIBEIRO

O IRELGOV acaba de abrir as vendas dos ingressos para o III Congresso Internacional do IRELGOV. A programação acontece nos dias 6 e 7 de junho, na Amcham, em São Paulo. O Congresso deste ano é, também, uma comemoração dos dez anos do instituto.

Associados ao IRELGOV e estudantes têm desconto especial.

Não deixe essa oportunidade passar: garanta o seu desconto no primeiro lote.


IRELGOV lança Código de Conduta e Ética 

O IRELGOV lançou seu Código de Ética, que tem como objetivo nortear o comportamento de associados pessoas físicas (PF) e jurídicas (PJ), profissionais de relações governamentais, empresas e entidades parceiras, no âmbito das relações internas e externas do instituto, com representantes dos setores públicos e privados.

Além disso, o instituto também atualizou diversas políticas internas, como:

- Política de Privacidade e Proteção de Dados do Site;

- Política de Comunicação, Posicionamento Institucional e Porta-Vozes;

- Política de Aprovação de Associações, Bolsas e Reajustes de Anuidades;

- Política de Viagens;

- Política Corporativa de Alçadas; e

- Política de Compras.


Dharma Academy e IRELGOV firmam parceria e dão 30% de desconto em cursos para associados 

Professor Creomar De Souza | Foto: Thiago Ribeiro

O IRELGOV e a Dharma Academy firmaram uma parceria que garante 30% de desconto nos cursos da instituição aos associados ao instituto. Os associados pessoas físicas e jurídicas (PF e PJ) podem se inscrever em cursos como “Masterclass - Como se Tornar um Analista de Risco Político?”, “Análise de Risco Político e Defesa de interesse” e “Avaliação Conceitual e Prática da Democracia”’.

A Dharma Academy é a esfera educacional da Dharma Political Risk and Strategy, consultoria especializada em análise de risco político, que tem como propósito permitir que o maior número de pessoas compreenda as dinâmicas do processo decisório. Entre seus principais produtos estão análises, aconselhamento e formulação de estratégias.


TSC e IRELGOV vão atuar juntos no monitoramento de temas e stakeholders 

O IRELGOV e a The Stakeholder Company (TSC) vão implementar, este ano, uma parceria para monitoramento de temas e stakeholders que possam apoiar o posicionamento do instituto como o principal think tank de relações governamentais e políticas públicas do Brasil.

“2024 marcará um ano importante para a atuação estratégica do IRELGOV junto aos setores público e privado. A parceria com a TSC nos apoiará no monitoramento de atores chave para promoção de boas práticas regulatórias e o debate de políticas públicas horizontais, fortalecendo a reputação do(a) profissional do setor”, afirma Lara Gurgel, diretora-executiva do IRELGOV.

Amalia Casas de las Peñas del Corral, gerente-geral Latam da TSC, também destacou a relevância da parceria. "Utilizar a Inteligência Artificial para identificar stakeholders e personalizar estratégias de envolvimento não apenas aprimora nossa eficácia, mas também nos incentiva a tomar decisões éticas e responsáveis em nossas relações governamentais, garantindo que as políticas públicas beneficiem a sociedade como um todo", ressalta. 


Programa de Mentoria IRELGOV: inscrições abertas

A ideia para o Programa de Mentoria do IRELGOV surgiu a partir da percepção, difundida entre profissionais no começo da atuação em Relações Governamentais e aqueles mais seniores, de que compartilhar as experiências e os caminhos trilhados durante a carreira é imprescindível para tomar decisões mais assertivas e bem fundamentadas. Mesmo que, em determinado ponto das nossas trajetórias, exista um componente de acaso - aquele colega que soube de vaga aberta em um lugar bacana justo no dia em que você decidiu sair da sua empresa! - sabemos que ampliar redes de contatos necessariamente maximiza oportunidades. E, entre a vontade de ajudar pessoas que saíram recentemente da graduação, e a vontade de aprender com pares, surgiu este Programa.

A primeira rodada, entre o final de 2023 e o início de 2024, teve 10 pares de pessoas mentoras e mentoradas. Todas elas fizeram, no mínimo, 4 sessões particulares de encontros, nas quais as mentoras direcionaram as conversas para, em um processo com muito diálogo, solucionar questões e dúvidas encontradas por mentoradas nesse caminho. Além de encontros da nossa equipe organizadora com todos os envolvidos, também fornecemos palestra com especialista em currículo e LinkedIn, para que os participantes tivessem acesso a uma diretriz compreensiva sobre esse conhecimento.

Importante mencionar que o Programa é voluntário e gratuito, de parte a parte, e que foi aberto a coletivos com os quais o IRELGOV possui parceria. Nosso Instituto atuou como facilitador desse processo, oferecendo uma estrutura organizada para os encontros da mentoria, monitorando o seu progresso e colhendo depoimentos das participantes, que claramente demonstram que se tratou de experiência rica e que deve ser replicada.

O Edital para o próximo Programa de Mentoria do IRELGOV já foi publicado. Divulguem e participem!

Mariana Chaimovich | Coordenadora do Programa de Mentoria do IRELGOV
Camila Salvatore e Raffaela Norcia | Bolsistas Colaboradoras do Programa de Mentoria do IRELGOV


Nova temporada do podcast TransformaGov debate digitalização das relações governamentais no período eleitoral 

A primeira convidada da nova temporada do podcast TransformaGov é a cientista política e psicóloga social Thaís Zschieschang, especialista em inovação pública, participação política e desenvolvimento sustentável.

No episódio, ela mostra como a tecnologia, por ser aplicável a muitas finalidades, requer uma visão clara do que se espera dela.

Na avaliação da especialista, a receita de um mundo digital equilibrado inclui vários ingredientes, de autorregulação a letramento digital, e a significativa participação da sociedade no debate.

Não perca! 


Ensaios IRELGOV

Nesta edição da Revista Diálogos lançamos a publicação "Ensaios" da Editora Diálogos, com o objetivo de ampliar o acesso, tanto dos membros do IRELGOV quanto da sociedade em geral, a conteúdos elaborados por nossos associados.

O tema desta edição, "Tecnologia e Relações Governamentais", se relaciona com o cotidiano de todos nós, profissionais, que, de uma maneira ou de outra, somos impactados pelas novas maneiras de monitorar, quantificar e produzir dados que influenciam a tomada de decisão de atores relevantes para os pleitos das nossas instituições ou para as pautas que defendemos como sociedade civil organizada.

Esperamos que aproveitem estes “Ensaios”. Boa leitura!

Por Mariana Chaimovich, Diretora da Editora Diálogos.

POR DENTRO DO IRELGOV

Um momento para construir e fortalecer a profissão de relações governamentais

Lara Gurgel
Diretora-executiva do IRELGOV

Influenciar a formulação de políticas públicas dentro de princípios legais e éticos é uma maneira legítima de participação em uma democracia. Para isso, nós, profissionais de relações governamentais, devemos buscar continuamente a profissionalização de nossa atividade e a adoção de boas práticas que nos permitam aperfeiçoar as relações público-privado e a prática regulatória.  

Criado com esse objetivo, o IRELGOV comemorará, em 2024, seus dez anos de história. Uma trajetória marcada por grandes mudanças internas e externas, em que o amadurecimento e o crescimento do instituto andaram lado a lado com a transformação da profissão de relações governamentais. Novas agendas foram incorporadas à atividade, temas multilaterais tomaram o centro das decisões, a aproximação com outros poderes passou a fazer parte da formulação de políticas e leis, e a relevância de estratégias coordenadas em nível nacional e subnacional se fortaleceram. Todas essas transformações foram acompanhadas pela evolução tecnológica e profissional das relações governamentais, permitindo-nos um amplo debate sobre a regulamentação da profissão.  

Em meio a esse cenário, nosso think tank realizará, em junho de 2024, mais um Congresso Internacional do IRELGOV. Profissionais, especialistas e autoridades se reunirão para refletir sobre passado, presente e futuro das relações governamentais, discutindo e apresentando tendências que poderão influenciar a maneira como nós, influenciadores de políticas públicas, desenvolvemos nossa atividade.

O evento também marcará três outros momentos importantes para o instituto. Primeiro, lançaremos os modelos de referência para profissionais e organizações que atuam na área de relações governamentais. Trata-se da principal e mais robusta entrega de conteúdo da atual gestão do IRELGOV, elaborado a partir de uma comunidade de prática de profissionais de relações governamentais. Em segundo lugar, realizaremos, por meio de votação, a escolha do novo Conselho Deliberativo do IRELGOV, responsável pela gestão do think tank até 2026. Por último, mas não menos importante, comemoraremos o aniversário de dez anos do Instituto.  

Participar do III Congresso Internacional do IRELGOV, maior evento de conteúdo e debate da área, é uma maneira de se engajar na construção e fortalecimento da atividade de relações governamentais no Brasil e no exterior. 

MATÉRIA DE CAPA

Política em tempos digitais

Para entender as consequências, nas próximas eleições e na atividade de relações governamentais, das novas tecnologias digitais, a revista Diálogos foi buscar a opinião de três especialistas de áreas distintas, mas que possuem em comum uma combinação ímpar de profundo conhecimento de seus campos de atuação e da cena política nacional. Carlos Ari Sundfeld, professor e jurista renomado, um dos articuladores do manifesto em defesa da democracia, que defendeu o sistema eleitoral brasileiro em 2022; Eugênio Bucci, jornalista, professor, ex-presidente da Radiobrás; e Thaís Zschieschang, cientista política e psicóloga social, especialista em inovação pública, participação política e desenvolvimento sustentável.

Confira abaixo as reflexões que eles compartilharam conosco:


Tecnologia e digitalização do relgov

“A tecnologia pode universalizar o direito ao relgov” 

Carlos Ari Sundfeld

De que forma a Inteligência Artificial pode influenciar nas eleições deste ano?
A tecnologia em geral e, especificamente, o uso dos mecanismos mais recentes de Inteligência Artificial aumentaram a capacidade de produção de imagens e textos e a difusão desses produtos a custo muito baixo. Isso torna a utilização desses materiais um instrumento muito poderoso nas eleições, ainda mais em pleitos municipais, que são pulverizados.

Portanto, é uma ferramenta nas mãos de partidos e candidatos para levar suas mensagens e, naturalmente, vale também para movimentos criminosos com informações e imagens falsas.

Esse é o desafio das próximas eleições: o aumento exponencial da capacidade de comunicação, com todos seus benefícios e riscos. Já vimos essa utilização no último pleito. De lá para cá surgiram mais prestadores desse tipo de serviço – e ele ficou ainda mais barato.

Como regular essa tecnologia? O Estado brasileiro está preparado?
O Estado vem trabalhando muito no campo tecnológico, em especial por conta de grandes serviços públicos, que dependem de informação, como é o caso do INSS, que vem registrando uma redução de problemas graças ao aumento da capacidade de processar dados rapidamente. O Pix, criado pelo Banco Central, é outro exemplo do investimento estatal em tecnologia.

Mas não é fácil. Quando você parte para estados e municípios, a capacidade de usar essas ferramentas diminui muito, por diversos motivos, de baixa organização a problemas orçamentários. As polícias são um exemplo negativo: apresentam dificuldades de fazer uso de tecnologias com a rapidez e a sofisticação que outras áreas da administração pública conseguem. O Estado não está engatinhando, mas ainda tem muito a fazer.

Quando falamos em regulação, podemos estar nos referindo a um sistema de salvaguardas para o processo eleitoral?
Nossa Justiça Eleitoral é muito bem-organizada. Existe há 90 anos e vem prestando bons serviços ao país. Por exemplo, a decisão, tomada nos últimos 20 anos, de incorporar tecnologia para aumentar a confiabilidade da eleição. Houve um forte investimento do nosso país, inclusive financeiro, e a Justiça Eleitoral conseguiu se preparar para proporcionar à nação um processo eleitoral limpo e seguro.

No entanto, é necessário lutar contra a manipulação da informação. Um dos caminhos consiste nas denúncias feitas pelos próprios concorrentes à eleição, que monitoram continuamente o que seus adversários fazem e levam qualquer deslize à Justiça com muita rapidez. Esta possui capacidade de tomar providências punitivas – já tivemos casos de governadores que perderam os mandatos, assim como um grande número de prefeitos cassados. O desafio, no entanto, é ser eficiente durante o processo eleitoral, dar conta do alto volume de denúncias e reagir a tempo para impedir a interferência antes do fechamento das urnas. Isso era mais fácil quando a propaganda eleitoral relevante se resumia à televisão e ao rádio. Hoje, com a dispersão proporcionada pela Inteligência Artificial, ficou bem mais complexo.

Outro ponto importante são os partidos políticos. Na medida em que o volume de problemas aumente, pode ser que os partidos comecem a ser considerados organizações criminosas e sejam extintos por determinação da Justiça eleitoral. Claro que muitos candidatos podem jogar com o risco, mas as punições serão pesadas.

Como preservar a democracia diante desses desafios criados pela tecnologia?
As democracias vivem permanentemente sob ataque. Se nos debruçarmos sobre os últimos quase 40 anos de implantação da democracia no Brasil, a partir de 1985, veremos que o que preservou a democracia foi sua capacidade de entrega. O apoio da população tem a ver com a constatação, pelas pessoas, de que o sistema democrático propicia espaço para que reivindiquem, reclamem e sejam atendidas.

E se o período foi de baixo crescimento econômico, por outro lado os benefícios da ação estatal se espalharam mais universalmente pelo país. Um exemplo é a Educação Fundamental – há 30 anos, a maior parte das crianças estava fora da escola. A democracia tem canais comunicantes com a população e isso acaba gerando um apoio, às vezes até mesmo inconsciente, ao conjunto de ferramentas desse sistema.

Em alguns momentos, a democracia é afetada por ações de organizações criminosas. Tivemos décadas de ditadura, que decorreram de elaboradas ações criminosas, bem-sucedidas, que tomaram o Estado de assalto e lá permaneceram até que a sociedade conseguisse reagir a isso. E essas tentativas não param – recentemente tivemos outra.

O importante é que o Estado conseguiu reagir. Aliás, o grande valor do Estado brasileiro, apesar de todas as suas imperfeições, é que ele não é monopolizado por ninguém. Não existe um monopólio do poder do Estado no Brasil. Há muita divisão. Isso causa até uma certa ineficiência estatal, mas divide efetivamente o poder e permite que as instituições reajam quando criminosos atentam contra a democracia.

Nas próximas eleições teremos novamente uma enxurrada de fake news?
Não tenho dúvidas. Porque as tecnologias ficaram mais baratas – e não creio que o padrão moral na política tenha crescido. Ele diminuiu, diminuiu muito. Então, a utilização das intituladas fake news tem sido estimulada pela confusão informacional geral, que transcende a política. Todos os indicativos são de que vai aumentar.

Elas podem realmente fazer a diferença e têm feito, em especial em pleitos proporcionais, para vereadores, deputados. As fake news têm sido poderosas porque conseguem encontrar nichos, conexões com eleitores que estão desgarrados, a partir da construção de imagens falsas e de acusações falsas.

No caso de eleições majoritárias, é bem mais difícil porque o número de candidatos é menor. É preciso formar coalizões, tudo é mais evidente. E o uso de fake news como uma tentativa de influenciar pode ser eficiente em cenários de relativa igualdade. O que pode segurar um pouco é o temor da punição, porque os candidatos sabem que a máquina da Justiça Eleitoral está funcionando.

O barateamento da tecnologia permite mais participação das pessoas. Há dez anos, era difícil entrar em contato com um deputado; hoje, você pode mandar um e-mail ou fazer comentários no perfil dele em uma rede social. Por outro lado, vemos o surgimento das câmaras de eco; Muitos só conversam com gente que concorda com sua própria opinião. Como vê esse cenário em nossas próximas eleições

Podemos ter um olhar otimista para a fase problemática que estamos vivendo. O que queríamos da democracia? Que as pessoas tivessem o direito de escolher, mas que a informação fosse concentradamente produzida pelas elites? Esse não é o sonho. A democratização dos canais de divulgação é um elemento essencial desse sistema.

No entanto, esse cenário aumenta os riscos de confusão informacional, um processo relativamente recente. E ainda não sabemos quais serão os resultados. Podemos esperar um amadurecimento paulatino de pessoas que viviam completamente à margem e que hoje dão opiniões, mesmo que muitas vezes disparatadas. Esse é processo longo, difícil, mas é um risco que o sistema democrático tem que correr, ainda mais em um país tão desigual quanto o nosso, com muitas deficiências educacionais.

Cabe à sociedade organizada colaborar, por meio da preservação de determinados valores, como a imprensa livre, de qualidade. Os veículos de comunicação profissionais podem nos proteger da desinformação. Isso inclui a comunicação pública, independente, como complemento da informação gerada por grupos privados. Infelizmente, o Brasil não vem priorizando essa alternativa.

Os canais públicos de comunicação, desde que tenham preservada sua independência, podem constituir uma das formas da sociedade se mobilizar para defender a democracia. Vê mais alguma outra forma?
Precisamos continuar investindo no aprimoramento dos Poderes. A história mostra que é possível ir aperfeiçoando as instituições oficiais, ir corrigindo seus defeitos. Temos que evitar as rupturas, que constituem a visão tradicional da esquerda, com revolução, e da direita, com golpe. Democracias mais maduras do que a nossa, com centenas de anos de construção, mostram que a construção da democracia é incremental.

Essa é uma alternativa. Um exemplo, muito sensível nos dias atuais, é o Supremo Tribunal Federal. Diria que é um poço de defeitos, consequência de problemas arquitetônicos, por conta da Constituição de 1988, e também por desvios posteriores de seus próprios ministros e por pressões externas. Mas isso não é motivo para quebrar tudo e nem para fechá-lo. A sociedade precisa acreditar no valor da evolução contínua e participar desse processo, debatendo, cobrando. São caminhos incrementais na melhoria das instituições para torná-las paulatinamente melhores.

Como os avanços da Inteligência Artificial impactam na vida do cidadão? Na Justiça, por exemplo, eles se revertem em decisões mais rápidas e bem fundamentadas?
A evolução tecnológica incorporada ao funcionamento dos serviços públicos possui uma capacidade transformadora absolutamente radical. Isso já está acontecendo no acesso a alguns serviços. O Pix, como já citei, é um deles. E nem percebemos que foi criado pelo Estado, que é quem, inclusive, garante a sua confiabilidade.

A tecnologia é capaz de melhorar o comportamento do cidadão diante do serviço de saúde, por exemplo. Um dos problemas na saúde é que as pessoas fazem exame, recebem receitas médicas, mas não vão buscar os remédios – mesmo que sejam gratuitos na farmácia popular –, muitas vezes por falta de condições, pois trabalham continuamente para garantir sua sobrevivência. Uma das soluções seria o Estado aumentar o Bolsa Família de alguém que é capaz de registar, em um aplicativo, a hora certa em que tomou o medicamento contra diabetes. Com isso, ele melhora sua qualidade de vida e evita onerar o serviço de saúde.

Em outros aspectos, como os processos jurídicos, que sempre foram muito morosos, ainda há caminho a percorrer. Hoje, na prática, a utilização da tecnologia da informação na Justiça é apenas para substituir papel por uma tela. A capacidade de processamento e cruzamento de informações ainda é relativamente baixa. Mas está evoluindo – há muito investimento sendo feito e isso tende a mudar o modo como a Justiça responde às demandas, inclusive aumentando os controles sobre o funcionamento dos processos.

Qual vai ser o desafio da Justiça? Impedir que a forma como ela está organizada, que é o modo do passado, impeça a evolução. Vamos ter que incorporar os benefícios da tecnologia para diminuir o financiamento da Justiça, o que significa mexer com interesses corporativos, de advogados a juízes, passando por promotores, delegados. É preciso reformar as instituições, o que propicia revoluções não sangrentas.

O modelo que temos hoje para construir políticas públicas ainda é um pouco distante das pessoas. A tecnologia pode aumentar a participação?
O Estado vem enfrentando o desafio de incorporar tecnologia de acordo com prioridades, muitas vezes na solução dos seus problemas internos. Infelizmente, não tem investido no aumento da participação propriamente, salvo experiências isoladas. Mas é importante ter aplicativos que aumentem a participação dos usuários, até para aperfeiçoar a eficiência do Estado. Assim como fazem com o Waze, as pessoas poderiam reportar problemas na via urbana e fazer com que os serviços aconteçam mais rapidamente. Isso terá um potencial transformador muito grande, porque ouvir as pessoas têm um valor extraordinário. O maior problema de um país desigual é que as pessoas nascem, vivem e morrem ocultas. São invisíveis. Somente na hora que você dá visibilidade ao problema é que o Estado começa a se mexer.

Uma das responsabilidades da atividade de relgov é justamente levar problemas ao conhecimento do Estado. Como o senhor avalia esse movimento?
A tecnologia pode universalizar o direito ao relgov. Agora, para isso ser bem-feito, precisa ter regras. Da mesma maneira que há normas para as relações governamentais feitas em favor de corporações, precisamos de regras boas, inclusive por meio dos recursos tecnológicos, para se fazer relações governamentais direto da população; para tornar o uso dessas informações que vêm direto da população eficiente, e não paralisante. O princípio, no fundo, é o mesmo. O valor que o relgov tem para as empresas, pode ter para a sociedade em geral, mas são as regras que garantem que o potencial do relgov se realize e não haja desvios.


Impactos das tecnologias na sociedade

“Mentiras eleitorais sempre existiram, não são uma invenção da era digital. O problema hoje é a escala da difusão da mentira"

Eugênio Bucci

De que forma a Inteligência Artificial pode influenciar nas eleições deste ano?
De muitas maneiras. Recentemente, o Fórum Econômico Mundial lançou um alerta sobre os riscos da desinformação, potencializada pelo uso de ferramentas de Inteligência Artificial. Isso dá a dimensão do problema, que constitui o principal risco que se apresenta para a humanidade nos próximos dois anos.

A Inteligência Artificial pode servir para conturbar, para desinformar, para desorientar. O cidadão comum mal consegue vislumbrar do que essa tecnologia é capaz, como imagens forjadas por IA, conhecidas como deep fake, textos e áudios. São muitas opções.

O avanço da internet mudou a forma de se fazer política e, em especial, campanhas. Se nosso arcabouço institucional pareceu funcionar até 2014, o pleito de 2018 foi um grande marco do que a internet é capaz de fazer em um período eleitoral. O senhor espera nessas próximas eleições uma enxurrada de fake news? O Estado tem condições de criar uma legislação adequada para fazer frente a esse cenário?
A complexidade dos pleitos vem se ampliando. Nosso país entrou para o grupo de nações da chamada polarização, e os contingentes de população dispostos a mudar de opinião parecem diminuir. Isso já foi chamado, em estudos fora do Brasil, de calcificação. Eu diria que elas se solidificam.

Em vez de uma maioria eventual, que é normal na democracia, temos blocos mais ou menos sólidos, que não abrem mão de suas posições. Mesmo quando existe uma insatisfação ou uma discrepância séria em relação ao líder, essas grandes massas de eleitores insistem em sustentar essa figura, com o objetivo de varrer o que a eles parece intolerável. Um exemplo disso é o fenômeno do bolsonarismo versus o antipetismo. Muitas vezes, as pessoas não se identificam totalmente com o líder de um dos blocos, mas aceitam apoiá-lo para afastar o outro, pelo qual nutrem antipatia.

Isso é um dado de complexidade intrigante, porque não é possível dizer que torna as coisas mais previsíveis. Não é bem assim. Ele é intrigante porque identifica uma conformação de agrupamentos na política e põe em questão a própria identidade e envolve valores, tradições e costumes.

Mentiras eleitorais sempre existiram, não são uma invenção da era digital. A política sempre tratou com a mentira, o que não quer dizer que a mentira seja aceitável ou que seja uma virtude da política. A mentira sempre compareceu na política e muitas vezes diria que ela era legítima, compreensível e até necessária, como nos casos de defender o interesse nacional.

O problema hoje é a escala da difusão da mentira, a velocidade, o alcance, a ponto de atrapalhar o andamento institucional. E a desinformação efetivamente pode gerar um estrago de monta. Podemos ter decisões consagradas pelos processos eleitorais normais que resultem no contrário do que é a vontade do eleitor. Isso aconteceu em outros contextos, como é o caso do Brexit. Trabalhadores empobrecidos que votam em uma causa que piora objetivamente a situação em que eles se encontram. É por isso que surge a pergunta: o Estado está protegido?
Se há um comprometimento da cultura política, da capacidade coletiva de conhecer um problema, as suas possíveis soluções, e de exercer a faculdade de escolher entre uma ou outra, muita coisa se perde no caminho. A sociedade perde a faculdade de se autoconduzir e chega à inviabilização do fluxo democrático normal, o que abre caminho para soluções autoritárias. É uma espécie de fadiga da democracia.

A primeira coisa que vem à cabeça de muita gente bem-intencionada é: nós precisamos ter um regramento para prevenir fake news. Mas isso é muito difícil. Se dependermos do Estado para dizer o que é verdade, esvaziaremos a democracia, porque a força desse sistema depende da existência de uma sociedade não tutelada e que, por si mesma, saiba discernir a verdade e a mentira.

O mais importante na legislação é ela conseguir tipificar e combater práticas nocivas, especialmente por conta do momento de polarização que atravessamos. Interessante notar que essa polarização se reduz muito no dia a dia do fazer político. O Legislativo, por exemplo, representa uma mistura de diferentes posições. Essencialmente, tem que caminhar para algum diálogo para viabilizar votações, emendas, pautas. O comportamento do Centrão torna possível uma convivência institucional.

Isso pode gerar um descompasso entre o comportamento de certos políticos que buscam conciliação, ainda que de forma espúria, e os anseios de uma sociedade que não parece querer nenhum tipo de acordo com o outro lado. Se, por um lado, a barganha das emendas permite a governança do país, por outro, é um mecanismo muito instável e não pensaria nele como uma solução de longo prazo.

Como garantir o acesso do cidadão a informações confiáveis?
Um público bem-informado é uma necessidade funcional da democracia. E o Estado pode ajudar a proporcionar às pessoas o direito à informação confiável, ou melhor verificável. Ela não pode ser confiável, porque foi dita por alguém – a democracia é inimiga do argumento de autoridade. Refiro-me a informações passíveis de exame, checagem e confirmação.

Tenho visto que as pessoas acreditam na ciência pelos motivos errados. Ela só é confiável porque é falível. Posso levar a sério o que a ciência propõe porque se apoia sobre verificações contestáveis, e que podem estar erradas. Os cientistas merecem nossa atenção não porque não cometem erros, mas justamente porque sabem o que fazer quando isso acontece.

Um dos problemas do nosso tempo é justamente esse. Quando vejo alguém dizer que não confia nesse ou naquele veículo, tenho calafrios. A imprensa vem sendo atacada com selvageria, por bandos de esquerda e de direita. Os argumentos tentam ferir o nervo do jornalismo, seu método de trabalho, de confirmação dos fatos.

Há um discurso mais à direita que rejeita Justiça, universidade, ciência, imprensa, todas as atividades que lidam com a verificação da realidade. Esse bloco negocia o tempo todo com uma fantasia de um país sem imprensa e sem verificação dos fatos.

No entanto, sem um trabalho jornalístico sério, não conseguiremos apurar corretamente os fatos e ter uma sociedade bem-informada. As instituições públicas deveriam exercer um papel de proteger o jornalista e a saúde dos meios de comunicação jornalística. Infelizmente, estamos muito distantes de reconhecer a necessidade desse tipo de ação política.

É fácil lembrar de uma ala da direita que taxa a imprensa de esquerdista. Mas há pouco tempo, na época do impeachment de Dilma Rousseff, a esquerda chamava boa parte da imprensa de PIG - Partido da Imprensa Golpista. Afinal, como avaliar a imprensa?
A imprensa comete erros, claro, mas ela precisa ter abertura para discuti-los. Quando é capaz de analisá-los, ganha energia e vigor.

Não podemos concordar com esse comportamento de que devemos jogar fora o trabalho da imprensa porque tudo é um lixo, que aparece como um eco de uma expressão nazista, que era “imprensa mentirosa” e que foi muito difundida no passado. Em seu livro “Mein kampf”, Adolf Hitler afirma claramente que a imprensa precisa ser descartada, fechada. Esse discurso que a gente ouve recentemente de uma banda extremista e antidemocrática da direita não tem nada de novo.

Se particularizarmos a expressão “imprensa golpista”, vamos perder de vista o problema real, que consiste na rejeição da verificação dos fatos. A conformação dos argumentos e o funcionamento do debate mais à esquerda mostram que existe um diálogo mais intenso das forças de esquerda com as fontes ou os veículos jornalísticos.

No jornalismo, de uma certa maneira, estatisticamente, o argumento de esquerda possui mais familiaridade com o mundo da verdade factual; já a argumentação de direita o rejeita totalmente. O imaginário da extrema direita antidemocrática rejeita até mesmo o princípio da realidade – a existência do outro e tudo mais que é incompatível com essa fantasia de um Estado autocrático, teocrático e monocrático.

O senhor disse que, para a democracia funcionar, é necessário um público educado, crítico, independente. Como as tecnologias digitais impactam esse cenário? Como podem favorecer a democracia?
Um dos fatos que nós temos que encarar nos nossos dias é que existe uma ignorância fabricada, diria mesmo que fabricada super industrialmente. Estamos acostumados a pensar a ignorância como um terreno vazio, como a inexistência de cultura. Onde existe informação existe menos ignorância.

No entanto, estamos hoje presenciando algo bem perturbador, o fato de a ignorância ser fabricada. Ela não é mais um vazio e sim um super acúmulo. E as tecnologias digitais mostram isso – uma quantidade inimaginável de figurinhas, filminhos, estímulos. Carícias imaginárias no ego, no desejo, produzem uma ignorância que pesa toneladas. Um acúmulo de dados, de divertimentos que não acrescentam nada. Pelo contrário, obstruem o caminho do conhecimento.

Isso é um dado perturbador, porque estamos vendo que a ignorância pode ser fabricada. E, sendo produzida, pode servir como uma barreira compacta contra o conhecimento e a informação. Portanto, resultam de muito trabalho tecnológico, político, um processo de fanatização.

O que me leva a dizer que desinformação é poder. Nós nos acostumamos a repetir que informação é poder. Mas hoje somos desafiados a entender que desinformação é poder. E há um poder obscuro, opressivo, que se vale da desinformação.

Em um artigo no jornal “O Estado de S. Paulo” o senhor afirmou que a civilização vai desaparecer num suspiro. A tecnologia seria uma das causas?
É claro. O que nos torna civilizados? Agir pela razão e não dar curso irrefletido a tudo que seja instinto, impulso ou pulsão. Isso leva em consideração a existência do outro, o que leva a um esforço de convivência. Os mitos que explicam a origem da sociedade lidam com essa ideia – na expulsão do Paraíso, no Velho Testamento, o homem e a mulher são convidados a entender o conceito de trabalho e que dependerão da cooperação com outros para sobreviver.

Nos mitos gregos, o presente dado aos humanos é o talento político, da convivência. Isso é civilização e não um prédio mais alto ou mais baixo, ou fazer um passeio num navio de luxo. Civilização está onde existem seres humanos vivendo em sociedade, coletivamente, que se reconhecem como tal e que se respeitam.

O que está em risco é exatamente isso. A tecnologia criou atalhos que estão nos levando velozmente para soluções mais selvagens, nas quais o humano é um coadjuvante. Ele vai deixando de ser o personagem principal da sua própria história. Nesse sentido, sim, a civilização está em face de uma séria ameaça.


O uso das novas tecnologias nas eleições

“É importante a pessoa ter capacidade de avaliar o que recebe (....) Tudo é uma questão de acesso à informação e letramento digital”

Thaís Zschieschang

Tecnologia é uma ferramenta que pode ser utilizada para muitas finalidades; no entanto, para ser otimizada, é preciso ter uma visão muito clara do que se espera dela. A frase reflete o entendimento da cientista política e psicóloga social Thaís Zschieschang, especialista em inovação pública, participação política e desenvolvimento sustentável. Para ela, a receita de um mundo digital equilibrado inclui vários ingredientes, de autorregulação a letramento digital. Em todos os cenários, no entanto, a sociedade é chamada a participar do debate.

Para Zschieschang, a regulamentação das ferramentas digitais não deve se limitar ao Estado. Em diversos países da União Europeia, as autoridades estão em pleno debate com especialistas sobre moderação de conteúdos. Se hoje a exclusão de uma mensagem nociva depende da ação de usuários, que fazem denúncias para as plataformas, no futuro, a ideia é contar com ferramentas que, combinadas com moderadores humanos, façam o controle.

“Comitês específicos podem excluir conteúdos violentos oucriminosos, por exemplo”, explica. “A combinação bem executada de autorregulação com as regras criadas pelas próprias plataformas, responsabilização das big techs, parcerias com empresas de fact checking e comitês de moderação resultam em uma construção contínua, em melhorias progressivas.”

Para os que temem uma eventual censura do espaço cibernético, Thaís Zschieschang entende que a moderação deve se limitar a conteúdos que infrinjam as leis – o que não pode ser dito ou feito no mundo real também é proibido no espaço virtual. “Divergência é plenamente aceitável. Você só não pode emitir opiniões misóginas ou racistas. Quando estamos falando de violência política, principalmente contra mulheres, racismo, discurso de ódio, notícias falsas, são crimes contra pessoas, porque cada usuário representa uma identidade. A moderação vai se limitar ao que de fato é nocivo para o coletivo, para a sociedade.”

O caso das fake news é essencial nessa discussão. Para a cientista política, as notícias falsas são tão poderosas que podem ganhar eleições ou acabar com candidaturas, por isso a necessidade de controle. Um bom exemplo foram os debates exibidos nas emissoras de TV nas últimas eleições presidenciais. Assim que acabavam a transmissão, as empresas de fact checking apresentavam suas conclusões sobre a veracidade do que havia sido dito pelos candidatos. 

O problema é justamente o timing – mesmo que desmentidas depois, a propagação de notícias falsas em cadeia nacional já tinha feitos seus estragos, alerta Zschieschang. “Subestimamos o potencial simbólico de figuras políticas e veículos de comunicação de massa. O tempo é uma variável muito sensível. Afirmar, depois de veiculada, que essa ou aquela notícia não é verídica não é o suficiente. Aquela percepção já foi construída, já foi tratada como verdade pelo imaginário coletivo. O dano é causado só pela existência da notícia falsa.”

Quando o assunto é política, como fazer para garantir informação de qualidade para que o eleitor tome sua decisão? A especialista reconhece que não há uma fórmula simples e que é preciso pensar em coisas complementares, especialmente por estarmos falando de um país tão desigual quanto o Brasil. “O primeiro ponto seria resolver problemas como acesso a tecnologia, equipamentos e rede de internet com qualidade”, comenta. Outra questão é o letramento digital, pois uma parte da população é mais suscetível a notícias falsas, por não saber buscar fontes de informação seguras ou não entender o funcionamento das plataformas. “É importante a pessoa ter capacidade de avaliar o que recebe, se a notícia é muito alarmante, se é um conteúdo patrocinado. Tudo é uma questão de acesso à informação e letramento digital.”

Por último, é necessário estimular a participação pública. Se o cidadão acha que política não está no seu cotidiano, se ele não se vê representado nela, ele não acredita nas instituições. “A tendência é se distanciar cada vez mais ou ser afastado propositalmente, seguindo a lógica de exclusão política. As pessoas têm que sentir que sua voz conta.” 

Nesse sentido, a tecnologia pode ser uma forma de incrementar a participação do público nas decisões de interesse coletivo. De acordo com a avaliação de Thaís Zschieschang, ela encurta muitos processos, tanto logísticos quanto cronológicos. “Pode funcionar como um incentivo para que a voz do cidadão se faça mais presente, já que é possível se manifestar à distância. Deve surtir efeitos também entre os jovens, pois esses estão nas redes sociais. Mas isso sempre tem que vir acoplado a ações analógicas, pois ainda existe um grande contingente de público que não tem acesso à tecnologia.” Ela acredita que o ponto relevante é a participação política. “Se a pessoa não perceber como a política afeta a vida dela ou se sentir excluída, a tecnologia não vai fazer diferença”.

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O processo eletrônico e a superação do “Hell Gov” na era digital

Por Filipe Brambilla 
A juventude é sempre relativa. Enquanto meus chefes me consideram jovem demais para entender as referências dos anos 90, eu, por outro lado, olho com perplexidade para o fato de que muitos de nossos estagiários jamais precisaram realizar um protocolo físico. O tempo passa e as perspectivas mudam.

A digitalização de processos judiciais e administrativos trouxe inegáveis benefícios para a advocacia de relações governamentais, mas, há pouquíssimo tempo, o cenário era bem diferente. Foi apenas em dezembro de 2013 que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) instituiu o Processo Judicial Eletrônico (PJe) como o sistema de processamento de informações e prática de atos processuais do poder judiciário (1). E foi somente em março de 2022 que os tribunais, por proibição expressa do CNJ (2), deixaram de distribuir processos em meio físico.

Por óbvio, a existência de processos eletrônicos não afasta a possibilidade de que as partes realizem atos presenciais, como audiências e até mesmo protocolos físicos, em situações excepcionais e que justifiquem o meio presencial. Contudo, os esforços das repartições públicas em digitalizar suas interações mostram bons frutos para otimizar as relações governamentais.

Cabe recordar, por exemplo, que o protocolo físico exige que o peticionante atenda ao horário específico de funcionamento da repartição e, muitas vezes, necessite agendar um horário para ser recebido. Vejam: em meus tempos de estagiário, não foram poucos os dias em que fui impedido de protocolar uma peça por não haver agendado previamente minha presença em determinado órgão, ou porque não consegui acessar um ônibus a tempo de cruzar a cidade até o local de distribuição.
O cenário mudou muito em relação ao caos – verdadeiro “Hell Gov” (3) – que se observava há alguns anos, mas nem por isso está tudo resolvido. Ainda hoje me deparo com órgãos que engatinham no processo de digitalização e mantêm práticas injustificadas, muitas vezes limitando – ilegalmente – o acesso a informações de certames licitatórios, processos administrativos e requerimentos.

Se a Administração Pública deve prestar obediência a princípios como moralidade, publicidade e eficiência, conforme prevê o artigo 37 da Constituição, não há espaço para se admitir a ressonância de burocracias e “caixas pretas” do passado nas relações governamentais.

Enquanto o CNJ divulga, com méritos, que os processos eletrônicos representaram 80,8% das ações em tramitação e 89,1% dos casos baixados no Poder Judiciário em 2021 (4), é preciso notar, a contraponto, que ainda hoje não temos dados unificados sobre a digitalização dos processos administrativos.

Mesmo no caso dos processos digitalizados, ainda há contrassensos. A cada uma ou duas semanas, o advogado de relações governamentais precisa criar um (novo) login em um Sistema Eletrônico de Informações (SEI) próprio de cada órgão processante. Em que pese os custos para unificação, há de se questionar se não seria possível permitir a existência de um acesso único (por exemplo, como se faz via “gov.br”) para todos os “SEI”. Uma vez logado, o peticionante poderia, então, escolher o órgão de seu interesse para realizar a consulta processual ou o protocolo de documentos.
Soluções fáceis nem sempre representam a melhor saída e, em um cenário em que novas tecnologias surgem a passos largos, é necessário cautela, com vistas à proteção do interesse público.

Uma das inovações mais comentadas dos últimos tempos, o ChatGPT, teve seu uso provisoriamente suspenso na Itália, por suspeitas de violação das regras europeias de proteção de dados. As autoridades italianas questionam a ausência de uma base legal que justifique o armazenamento de dados dos usuários pelo ChatGPT, com o fim de treinar os algoritmos subjacentes à plataforma (5). O caso italiano ilustra bem a razão pela qual os governos locais devem atentar às inovações tecnológicas com racionalidade, pois existem riscos associados ao uso de tecnologias que ainda não foram completamente validadas.

Fato é que, para superarmos de vez o “Hell Gov” de práticas obsoletas nas relações governamentais, é preciso que se mantenha, de forma perene, um esforço do poder público, com o objetivo de implementar soluções tecnológicas já validadas e que tragam ganhos de eficiência e de condições de acesso aos administrados. O papel de entidades fiscalizadoras e de órgãos de controle é relevante nesse processo, mas é preciso que os próprios órgãos busquem a digitalização contínua de suas práticas, haja vista que, ao fim e ao cabo, tal implementação trará economia e facilidades não só aos particulares, como ao poder público, especialmente na gestão de rotinas e registros documentais.

Filipe Brambilla - Advogado associado no escritório TozziniFreire Advogados, com atuação em direito administrativo e projetos governamentais e profissional certificado em Parcerias Público-Privadas – CP³P – pela APMG International

Referências:(1) BRASIL. Resolução CNJ nº 185, de 18 de dezembro de 2013. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/files/resolucao_185_18122013_01042019195928.pdf. Acesso em: 27 jan. 2024.
(2) Conselho Nacional de Justiça. Judiciário vai receber apenas processos eletrônicos a partir de março de 2022. Agência de Notícias do CNJ, 2022. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/justica-em-numeros-2022-judiciario-julgou-269-milhoes-de-processos-em-2021/#:~:text=Em%202021%2C%20os%20processos%20eletr%C3%B4nicos,%2C7%25%20das%20serventias%20judiciais. Acesso em: 27 jan. 2024.
(3) Trata-se de um trocadilho com a sigla “RelGov”, a partir da substituição da abreviação “Rel” pela expressão em inglês “Hell”, que se traduz como “inferno”.
(4) CNJ. Op. Cit. 2022.
(5) G1. Itália bloqueia ChatGPT após suspeita de violação de regras de coleta de dados. 2023. Disponível em: https://g1.globo.com/tecnologia/noticia/2023/03/31/italia-bloqueia-chatgpt-apos-agencia-de-protecao-de-dados-abrir-investigacao-sobre-privacidade.ghtml. Acesso em: 27 jan. 2024.

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O futuro é aqui e agora

Por Gustavo Bernard
 
Um atento passeio pelas modernas avenidas e bairros de Dubai e Abu Dhabi, nos Emirados Árabes Unidos, é suficiente para perceber os avanços que a transformação digital tem causado nas empresas e governos das mais inovadoras e desenvolvidas cidades do globo, a exemplo do que vem ocorrendo em Londres, Paris, Nova York, Tóquio e Singapura. Símbolo de adjetivos superlativos, a metálica e futurista Dubai, território do Burj Khalifa – o edifício mais alto do mundo –, também tem sido um dos principais cenários do Oriente, com grandes e crescentes investimentos em tecnologia e inovação.

Imensas estruturas de concreto, aço, ferro e vidro sobem diariamente no meio do deserto, dividindo espaço com inúmeras mesquitas, para sustentar aceleradas construções de bairros e edifícios digitais, como é o caso da Cidade da Internet, próxima à maior ilha artificial do mundo, a The Palm Jumeirah. É nessa arborizada e tranquila localidade, perto do chamado Parque do Conhecimento, cercada por respeitadas universidades do Oriente e Ocidente do planeta, como a australiana Wollongong e a inglesa Middlesex, que empresas digitais, na sua maioria norte-americanas, como IBM, Microsoft, Google, Samsung, Oracle, Meta, Cisco e outras, dividem o mesmo espaço de seus edifícios e escritórios multiculturais.

As bicicletas e patinetes elétricos são alguns dos meios de transporte de estudantes e funcionários dessas inovadoras companhias. São cidadãos de diferentes nacionalidades e gerações, alguns circulando com seus cachorros robôs integrados ao ChatGPT, que se misturam entre tradicionais e inovadores hábitos e costumes, inclusive religiosos, nos conectados e inteligentes sistemas logísticos da cidade, formados também por trens, barcos, metrôs, ônibus e rodovias. Esses estudantes de diversas áreas do conhecimento humano e científico, das artes às engenharias, circulam diariamente pelas ciclovias e demais rotas urbanas, com suas mochilas repletas de equipamentos digitais e tecnológicos, a caminho de bairros vizinhos ou distantes da cidade.

O destino de alguns desses moradores são localidades como a Cidade da Mídia, onde estão importantes conglomerados de informações: Gulf News, CNN, Thomson Reuters e BBC Studios. Cada “hub” urbano de inovação – seja de mídia e entretenimento, financeiro, agronegócio ou saúde – tem implementado em suas estratégias e políticas novos códigos e condutas que reforçam a passos largos essas tendências da digitalização e conectividade: Inteligência Artificial, “machine learning”, modelagem 3D, robótica, digitalização, tecnologias de precisão, “blockchain”, tecnologia “ledger”, aplicativos e soluções digitais diversas.

Em cada feira internacional ou encontro de negócios, inclusive com a participação assídua de competitivas companhias chinesas, esses mantras são repetidos incansavelmente para reforçar as visões de um futuro próximo, paralelamente às novas roupagens políticas e comerciais internacionais, como o mais recente BRICS, agora ampliado para acomodar a economia dos Emirados Árabes Unidos entre as nações do grupo dos emergentes, juntamente com África do Sul, Arábia Saudita, Brasil, China, Egito, Etiópia, Irã, Índia e Rússia. Nessa sonora Torre de Babel, onde se misturam dialetos e sotaques de todos os cantos do mundo, não faltam direções para o atingimento de metas pró transformação digital.

Até 2025, o governo dos Emirados Árabes Unidos pretende, em consonância às recomendações da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) para a digitalização pública, alcançar até oito dimensões para governos digitais: inclusão, resiliência, adequação digital, foco no usuário, design digital, orientação para dados e padrão aberto e proativo. A expectativa das autoridades públicas dos Emirados, com as aberturas à economia criativa, por exemplo, é elevar nos próximos dois anos a famosa Dubai e suas zonas livres de impostos à capital global da inovação, com incrementos de até 5% no Produto Interno Bruto (PIB) do país em 2025, geração de mais de 140 mil empregos e o envolvimento de cerca de 5,4 mil empresas e startups só no segmento de entretenimento e criatividade. São movimentos que explicam parte do otimismo global com os efeitos das novas tecnologias nas sociedades contemporâneas.

Pesquisa recente da Boston Consulting Group (BCG), com base em 13 mil entrevistados de diferentes países, mostra que os efeitos das novas tecnologias, sobretudo no trabalho, agradam mais que preocupam. São líderes, gestores e linha de frente de empregados que esperam melhorias na qualidade de vida, enquanto a digitalização do mundo avança. São as novas e irreversíveis feições do presente, lideradas por personalidades como o primeiro-ministro e vice-presidente dos Emirados Árabes Unidos, o xeique Mohammed bin Rashid Al Maktoum, que surpreenderiam até mesmo o teórico e matemático inglês Alan M. Turing, pai da ciência da computação e da Inteligência Artificial, caso o mesmo ainda estivesse aqui e agora. 

Gustavo Bernard - Mestrando em Economia (IDP), especialista em Relações Internacionais (UnB) e bacharel em Comunicação (UCB). Teve passagens pelos setores públicos brasileiro (Executivo, Legislativo e Judiciário) e privado (Grupo RBS, Edelman, Thomson Reuters, Gazeta Mercantil, EBC, Dominium consultoria). É diretor da Bernard Mentoring & Consulting. 

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Um framework para estimular a aprovação de projetos de lei

Por Ignacio García

O conceito do "contrato social" tem sido amplamente discutido pela filosofia política, sociologia e economia ao longo da história, desde os tempos de Platão até os dias atuais. Trata-se de um princípio organizador subjacente à vida em sociedade, no qual os indivíduos renunciam a certas liberdades e se submetem a uma autoridade comum, como o governo e o Estado, em troca de proteção e ordem social.  

Recentemente, o economista Mathieu Cloutier, do Banco Mundial, definiu o contrato social como um "acordo dinâmico entre Estado e sociedade sobre as funções e responsabilidades mútuas" (Cloutier, 2021). Na mesma linha, no meu entender, a qualidade do contrato social de uma nação depende das caraterísticas das redes de cooperação que se formam entre diversos stakeholders (não apenas a elite), onde a confiança desempenha um papel vital na busca de acordos que beneficiem o conjunto da sociedade. No entanto, diversas fontes indicam que, no Brasil, assim como em outros países da região, a confiança é um recurso escasso e circula principalmente dentro de redes sociais de proximidade dos indivíduos, que tendem a priorizar seus benefícios individuais de curto prazo em detrimento do bem comum.  

Diante disso, surgem duas perguntas importantes: 

- Por que a sociedade brasileira enfrenta tantas dificuldades na criação de redes de cooperação que impulsionem reformas reconhecidas como essenciais para o bem comum? 
- Quais são as tendências e variáveis que se destacam nos projetos de lei que são finalmente aprovados e como isso pode ser utilizado para estimular uma aprovação mais fluida?   

A evolução do contrato social em duas leis brasileiras: Fundeb e Previdência Privada  

A oportunidade de materializar essas perguntas surgiu quando, em março de 2021, o Banco Mundial nos solicitou um estudo inovador para compor parte do relatório "The Brazil of the Future: towards Productivity, Inclusion, and Sustainability" (Banco Mundial, outubro de 2023). O estudo tinha como objetivo (re)construir e analisar as redes de diversos stakeholders relacionadas com o processo de aprovação de duas leis brasileiras (Fundeb e Previdência Privada), desde o momento em que foram propostas até a sua aprovação final, criando um contraponto de análise de dois projetos de lei bem diferentes, para, desta maneira, identificar variáveis e insights sobre o comportamento das dinâmicas de redes em futuros projetos de lei.  

Para isso utilizamos uma abordagem que envolveu coleta de dados públicos e abertos dispersos no ambiente digital, mapeamento e análise temporal das redes de relacionamentos entre os diversos stakeholders, e análise narrativa das opiniões, posicionamentos e debates online, utilizando fontes como Twitter (atual X), notícias e o Congresso Nacional. A ferramenta proprietária LivingStakeholders foi utilizada para este estudo.   

Fundeb

No caso do Fundeb, houve a necessidade de uma reforma para torná-lo permanente, já que o acordo anterior expiraria no final de 2020. No processo de negociação, houve debates sobre o aumento dos valores e a fórmula de distribuição dos recursos.  

Durante esse período, dois grupos se posicionaram:

a) Defensores de um aumento do aporte da União, liderados por sindicatos de professores, que eram favoráveis à renovação, mas contra o aumento dos repasses.
b) Opositores da renovação, que faziam parte de partidos de direita.   

Imagem 1. Dois momentos do processo em rede em relação ao Fundeb 

Ao analisar a rede de stakeholders envolvidos nesse processo, observamos que em 2018 a rede possuía 198 atores, claramente divididos em grupos que incluíam poderes Legislativo e Executivo, além de setores da sociedade civil, como especialistas, ONGs, grupos de reflexão e sindicatos. Em 2020, a rede havia se expandido para 228 atores, demonstrando um aumento na densidade das conexões.  

Um aspecto relevante desse processo em rede foi o papel central das organizações da sociedade civil na liderança da reforma, com um crescimento na conectividade e uma articulação com outros grupos da rede. Essas organizações atuaram como intermediárias, conectando os diversos grupos do Poder Legislativo. Por outro lado, os nós do Poder Executivo perderam coesão e centralidade ao longo do tempo, e o Governo Federal permaneceu distante das discussões. Esse cenário fortaleceu o papel das organizações da sociedade civil e dos sindicatos.  

Cabe destacar o alto grau de heterofilia na rede. A heterofilia indica o grau em que os atores de uma rede estão ligados a atores de diferentes categorias, o que reforça o fato de que a rede estava pouco polarizada, com nós atuando como pontes entre diferentes tipos de atores da sociedade civil e membros do Legislativo. Um dos principais nós intermediadores da rede foi o think tank "Todos pela Educação", que desempenhou um papel estratégico como conector entre os clusters, articulando argumentos técnicos e relatórios de forma acessível à sociedade civil e estabelecendo conexões tanto com especialistas quanto com tomadores de decisão.   

Previdência  

No caso da Reforma da Previdência, a dinâmica foi marcada por uma polarização desde o início do processo, abrangendo duas administrações diferentes, a do governo Temer (2016) e a do governo Bolsonaro (até novembro de 2019).  

Houve mobilização da sociedade civil a favor e contra a reforma, com protestos e convocações de greves gerais durante o governo Temer. No entanto, a mobilização em torno da proposta de Bolsonaro foi mais equilibrada, em parte, devido ao seu apoio público na época.  

Imagem 2. Dois momentos do processo em rede em relação à previdência privada. 

Ao analisar a rede de stakeholders envolvidos nesse processo, observamos que havia uma estrutura de rede semelhante em ambos os momentos, mas com um aumento no número de atores e conexões, indicando um incremento na densidade das relações.  

Também se observa que, na rede de 2019, houve maior engajamento e menor polarização, com destaque para a participação da sociedade civil, especialistas e governo, resultando no sucesso da reforma. Essa maior coesão e densidade na rede podem ser traduzidas como um aumento do contrato social, culminando em sua aprovação. Como resultado desse estudo, foram identificadas 27 variáveis relevantes que influenciam a probabilidade de aprovação de projetos de lei no futuro.  

Em termos gerais, o estudo revela a importância de um framework metodológico e tecnológico capaz de mapear e visualizar as redes do contrato social em diferentes momentos do processo de aprovação de projetos de lei. Isso auxilia na modelagem de cenários futuros e na tomada de decisões estratégicas e táticas, como ações de lobby, advocacy e desenvolvimento de cooperação entre diversos atores. 

Ignacio García é antropólogo digital e organizacional argentino (UBA), radicado no Brasil. Co-fundador da empresa de inteligência social Tree Intelligence e idealizador do sistema de mapeamento, monitoramento e gestão de redes (multi)stakeholders LivingStakeholders

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Análise de conjuntura: uma ferramenta essencial e incontornável para o sucesso dos profissionais de advocacy e RIG

Por Cledisson Júnior 

A dinâmica de profissionalização de organizações da sociedade civil, com o objetivo de defender suas causas e interesses, tem sido motivo de estudos e pesquisas por parte da academia, o que tem contribuído – e muito – para maior reflexividade e dinamismo do advocacy em todo o mundo. Também são extensas as pesquisas que analisam os diferentes perfis dos profissionais da área. É notória a ampliação da presença de profissionais nas organizações sociais com experiência no trato institucional da política, em jogo o compartilhamento de conhecimentos adquiridos em trabalhos exercidos no Poder Executivo, no Legislativo, nos partidos políticos ou mesmo na direção dos movimentos sociais de base. A presença desse profissional tem permitido a grupos de interesse e defesa de causas um salto significativo na qualidade da incidência sobre os tomadores de decisão.

Análises sobre a presença desses profissionais (Medvetz 2012)1 nas entidades do terceiro setor apontam para o papel de elaborador de argumentos técnicos que subsidiem o trabalho das direções desses grupos, assim como o ator responsável pela estratégia de incidência direta nos legisladores e gestores das políticas públicas que se quer debater.

Neste ponto, quero fazer uma inflexão para falar de um dos instrumentos essenciais para o desenvolvimento do trabalho dos profissionais em advocacy: a análise de conjuntura.

É importante situar que não existe uma única forma ou método para se fazer uma análise de conjuntura. Entretanto, dentre os possíveis modelos, cito o método proposto pelo sociólogo Herbert José de Souza (2014)2, o Betinho.

Segundo Betinho, uma análise de conjuntura é uma ferramenta de reflexão que leva em consideração diferentes categorias, como acontecimentos, cenários, atores, relações de força e a articulação entre estrutura e conjuntura. Uma análise bem-feita é aquela que valoriza os detalhes de uma determinada situação, com o objetivo de observar suas especificidades. É preciso fixar a compreensão de que conjuntura é o momento em que se observa a existência de fenômenos que podem caracterizar uma situação em uma determinada sociedade/comunidade, podendo ser entendida como uma disputa entre atores inseridos em uma realidade em comum.

Quanto maior são os elementos de subsídio para a análise de conjuntura, isto é, quanto maior o número de dados (qualitativos e quantitativos) que contextualizem o cenário observado, com especial atenção para suas dimensões econômicas, sociais, políticas, tecnológicas e culturais, maiores são as possibilidades de aproximação (não estamos aqui falando de uma ciência exata) e identificação das tendências. E, como resultado da análise, seremos capazes de elaborar e definir estratégias de advocacy mais eficientes na busca por conseguirmos impactar positivamente uma política pública ou, a depender do objetivo, produzir freios às ameaças advindas de políticas públicas irresponsáveis, que ameaçam as conquistas e o bem-estar da cidadania.

É sobre ser capaz de antecipar cenários, atenuar riscos e desenvolver maior controle sobre os impactos da imprevisibilidade.

Ao longo de toda a história da humanidade, houve processos de reflexão que nos levaram a conhecer melhor nossas realidades. Em um momento posterior, esse exercício foi sistematizado e tem servido de bússola para inúmeras organizações e militantes políticos que dedicaram suas vidas às disputas daquilo que aqui quero chamar de uma política dura, envolvendo leituras divergentes sobre os rumos da sociedade e estratégias de conquista do poder estatal.

É fundamental e estratégico conhecer o Estado e seus mecanismos para, enfim, disputá-lo.

O profissional oriundo deste universo tem sido fundamental para o aperfeiçoamento e a qualidade do serviço prestado pelas organizações da sociedade civil e de defesa de interesses que buscam incidir nas instituições e influenciar os tomadores de decisões.

Concordo com Malena Saragom (2018)3 que a análise da conjuntura é um exercício complexo, sendo também um ato político, que demanda uma gama de conhecimento, mesmo que seja vista como um processo interessado e vinculado a uma visão de mundo específica, secundarizando a imparcialidade e neutralidade do grupo que a executa. Entretanto, existem atualizações metodológicas que permitem uma reflexividade mais neutra, tornando a análise conjuntural uma ferramenta incontornável para os profissionais responsáveis pelo desenvolvimento das estratégias em torno da defesa de interesses.

A literatura, assim como a prática profissional cotidiana do especialista em advocacy, dos atores que empregam suas capacidades na busca por desenvolver relações governamentais e institucionais éticas e coerentes, com uma visão de mundo que contemple os interesses e o bem-estar da cidadania, aponta-nos que influenciar os tomadores de decisão é perfeitamente possível. Demanda, contudo, trabalho duro e sistemático, com etapas fundamentais que não podem ser negligenciadas, como estudo regulatório, mapas de poder (o famoso caródromo), questões subjetivas, como a atenção despendida por esses gestores às audiências promovidas pelas novas tecnologias (redes sociais) e uma avaliação criteriosa dos riscos políticos, assim como a permeabilidade desses tomadores de decisões quanto à pressão exercida pela sociedade civil organizada. 

Cledisson Júnior - Secretário-executivo da Frente Parlamentar Mista Antirracismo do Congresso Nacional, vice-presidente do Conselho Diretor do Advocacy Hub e integra o Coletivo Pretas e Pretos em RelGOV

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A oportunidade chinesa

Por Rafael Cabral Maia

O economista grego Yanis Varoufakis, em seu livro “O Minotauro Global”, aborda a possibilidade de o mundo ter sido forçado a passar por uma reestruturação econômica após a crise do subprime nos Estados Unidos em 2007 e 2008. A ruptura causada pela gigantesca crise financeira teria impactado a maneira como a principal economia do mundo financia seus déficits gêmeos, o orçamentário e o comercial, e a partir daí criado oportunidades para outras nações ganharem relevância e sonharem com a proeminência no comércio internacional.   

Em 1944, John M. Keynes fez uma proposta em Bretton Woods para a criação da Câmara de Compensações Internacionais, onde as economias mais ricas do mundo criariam um fundo para financiar os déficits das nações que precisavam equilibrar suas balanças comerciais usando recursos emprestados de nações superavitárias. Essa ideia foi aproveitada apenas em parte, infelizmente. Os Estados Unidos estavam em vias de saírem vitoriosos da Segunda Guerra Mundial e percebiam, no momento das discussões, uma influência sobre os rumos do mundo como jamais haviam visto. Seu poderio bélico e econômico no momento foi determinante para refutar as ações idealizadas pelo economista inglês e direcionar o acordo para o caminho que escolhessem.  

Não cabe aqui esmiuçar o acordo firmado quando as ideias de Keynes foram distorcidas, mas sim ressaltar que, no lugar da proposta inglesa, foi adotado o sistema que conhecíamos até 2008, no qual o dólar se consolidava como a principal moeda de transações no comércio internacional, e os déficits americanos acabariam por ser financiados por nações europeias e asiáticas.  

A crise do subprime foi causada pela criatividade financeira exagerada dos bancos comerciais norte-americanos, em resposta ao fluxo constante dos dólares que voavam para suas contas partindo da Europa e da Ásia anualmente. Pós Bretton Woods, essas regiões foram imensamente financiadas pelos Estados Unidos e saíram da condição de completamente devastadas pelo conflito militar para tornarem-se motor do crescimento mundial, exportando para os Estados Unidos bens manufaturados. Como resultado das exportações e do superávit que essas regiões conseguiram, os dólares acabaram retornando para os bancos americanos em forma de investimento.  

Em determinado momento do século XX, até 80% dos dólares no planeta estavam retornando para os bancos comerciais dos Estados Unidos com regularidade, num processo que Varoufakis denominou “reciclagem de excedentes”. Com uma quantidade cada vez maior de dólares em seu poder, os bancos passaram não apenas a emprestar com uma ferocidade inédita, mas também resolveram criar ativos financeiros mesclando os riscos de relações comerciais com as quais não tinham qualquer ligação. O resultado do exagero na criação de ativos financeiros e da crescente desregulamentação do sistema bancário americano foi a crise do subprime.  

O fim da festa causou o abrandamento do sistema de financiamento de déficits e abriu as portas para novas oportunidades às demais nações. Nos anos que se seguiram, outros países passaram a dividir as atenções comerciais do mundo e a se sentir propensos a ganhar destaque no cenário internacional. China, Índia e os demais membros dos BRICS formaram um bloco econômico e político que evolui a cada ano. Conferências econômicas como o Fórum Econômico Mundial, até então irresistíveis para os líderes globais em anos anteriores, hoje se veem desprestigiadas e dando lugar a atividades semelhantes ocorridas em nível regional, sobretudo na Ásia, sob a liderança chinesa. A China comanda um Fórum Econômico próprio, ao que tudo indica, com forte e crescente presença de empresários e governos do mundo todo.  

Aproveitando o cenário favorável, a China, país que pode em algumas décadas desbancar os Estados Unidos como principal economia do mundo, passou a tomar decisões mais assertivas em suas relações internacionais. O país parece ter abandonado o pensamento confucionista que caracterizou suas relações com outros países durante muitos séculos, e passado a adotar soluções mais práticas para conquistar parceiros comerciais que viabilizem tanto matéria-prima quanto consumo e influência no resto do mundo.  

A oportunidade aberta pela abrupta interrupção do sistema de reciclagem de excedentes anteriormente conduzido pelos Estados Unidos garante condições para a China enfim disputar a proeminência no comércio internacional e influenciar uma nova forma de gestão dos déficits e superávits globais. E esse processo de conquista do mundo parece já ter começado.  

Embora os norte-americanos tenham um valor nominal de PIB em dólares maior neste momento, condição que, ceteris paribus, seguirá assim por algumas décadas, em termos de paridade do poder de compra (PPC) o Produto Interno Bruto (PIB) chinês já é o maior do planeta desde 2018. Mesmo o forte impacto sentido durante a pandemia de coronavírus em 2020, que fez o crescimento de seu PIB ser reduzido de 6%, em 2019, para apenas 2,3%, em 2020, não foi suficiente para retirar o país da liderança, se considerarmos essa forma de mensuração.  

Em 2023 o país apresentou crescimento de 5,3%, acima das expectativas internacionais, demonstrando segurança e resiliência do modelo econômico adotado. Esse novo modelo é fruto de um sistema político unicameral sob o firme comando do Partido Comunista e da nova mentalidade de investimentos, na qual parte significativa dos recursos foi retirada das áreas rurais e redirecionada para as regiões urbanas da China. A reboque dessa mudança, uma nova e crescente indústria foi responsável por converter uma economia basicamente subdesenvolvida na grande potência global que vemos ascender hoje.  

Tudo o mais constante, estamos presenciando um momento importante para a população do mundo inteiro: a nova virada de chave nas relações econômicas mundiais e a reconfiguração dos sistemas econômico e político globais. Nesse sentido, valeria questionar como seria o mundo pós-China. Seria uma liderança ao estilo americano, que de maneira forçada tem subjugado outros países aos seus interesses político-econômicos ou existe a chance de uma liderança menos agressiva?  

O diplomata singapurense Kishore Mahbubani, refuta a ideia ocidental de que a China teria características expansionistas e estaria direcionando sua diplomacia por esse caminho. Segundo Mahbubani, a filosofia confucionista sobreviveu à Revolução Cultural de Mao e seria incompatível com uma postura mais agressiva nas relações internacionais.  

Já Henry Kissinger afirmava que, diferentemente do que diz Mahbubani, a China terá sim desejos de reestabelecer à sua maneira a forma de manipular a economia global. Tendo ficado de fora das ordens internacionais previamente constituídas, como a Paz de Vestfália, o Congresso de Viena e Bretton Woods, e tendo sofrido todas as derrotas que o chamado Século de Humilhação lhe proporcionou, seria ingênuo supor que, reassumindo a proeminência econômica global, não tentaria reconfigurar as condições nas quais o comércio internacional se dá à sua maneira. 

Rafael Cabral Maia - Economista e consultor de relações governamentais

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As relações institucionais na maior cidade da América Latina

Por Rafael Rubim

São Paulo é uma cidade-país e sua gestão é um enorme desafio. Tudo na cidade de São Paulo é ampliado, tanto suas potências quanto os desafios, que precisam ser enfrentados diariamente. No contexto da execução das políticas públicas da cidade, a Secretaria Executiva de Relações Institucionais (SERI) aparece como um importante vetor de conexão do poder público municipal com setor privado, sociedade civil, entidades religiosas, terceiro setor e entes federativos, entre outros.

Na gestão do prefeito Ricardo Nunes (MDB-SP), a SERI, que conta com a liderança do ex-deputado federal Enrico Misasi (MDB-SP), é posta como ponto focal das principais demandas que a sociedade possui, e pode ser chamada de porta de entrada ao poder público municipal, pois esta tem sido a principal diretriz do atual secretário – ouvir todas as demandas, direcioná-las para a respectiva secretaria responsável e acompanhá-las para um melhor encaminhamento, a fim de que as demandas possam ser atendidas da melhor maneira, de forma técnica e eficiente.

Regulamentada pelo Decreto nº 61.245, de 20 de abril de 2022, a SERI tem por atribuição coordenar as estratégias de atuação interfederativa e metropolitana, promover as iniciativas de Governo Aberto, bem como proporcionar o relacionamento da Prefeitura de São Paulo com as entidades e confederações do município.

Hoje a secretaria conta com três coordenadorias – Coordenadoria de Assuntos Federativos e Metropolitanos (CAFEM), Coordenadoria de Relacionamento com Entidades e Confederações (CRE) e Coordenadoria de Governo Aberto (CGA).

A Coordenadoria de Assuntos Federativos e Metropolitanos (CAFEM) tem as seguintes atribuições:

I - apoiar a articulação institucional com:

a) entes federativos da Região Metropolitana de São Paulo (RMSP), no âmbito do Conselho de Desenvolvimento da RMSP e outras regiões metropolitanas, secretarias do estado, e ministérios da União, orientada à execução das Funções Públicas de Interesse Comum (FPIC);

b) órgãos e entidades de representação municipal;

II - acompanhar o desenvolvimento de pautas do Congresso Nacional e da Assembleia Legislativa relevantes para o município de São Paulo e para a Região Metropolitana de São Paulo (RMSP);

III - promover e monitorar os processos de transferências voluntárias de recursos financeiros de outros entes federativos para o município de São Paulo;

IV - exercer outras atribuições correlatas e complementares na sua área de atuação. 

A Coordenadoria de Relacionamento com Entidades e Confederações (CRE) tem as seguintes atribuições:

I – promover e articular relações do Poder Executivo para identificação de demandas com entidades representativas e confederações não sindicais e/ou representativas de servidores públicos;

II – prospectar parcerias e promover o estreitamento entre entidades parceiras e órgãos da Administração Pública Municipal, observadas as diretrizes e normativas estabelecidas pelo órgão central competente;

III – identificar impactos de atos normativos sobre as atividades de setores diversos da sociedade por meio de consultas a entidades representativas de setores destinatários das respectivas normas.

A Coordenação de Governo Aberto – CGA tem as seguintes atribuições:

I - promover a articulação e a integração das diretrizes prioritárias de Governo Aberto no âmbito da municipalidade;

II - supervisionar, monitorar e avaliar a construção e a implementação dos Planos de Ação em Governo Aberto;

III - participar e propor ações em redes internacionais em Governo Aberto;

IV - propor e executar projetos de descentralização da pauta de Governo Aberto, incluindo a promoção do diálogo, a participação e a capacitação da sociedade civil;

V - exercer outras atribuições correlatas e complementares na sua área de atuação.

Como pode se notar, o rol de atribuições para atendimento da Secretaria Executiva de Relações Institucionais (SERI) é bem amplo, e realmente qualquer demanda pode ser levada à equipe da secretaria, desde o atendimento por parte da Companhia de Engenharia de Tráfego de São Paulo (CET) para um farol apagado na sua rua, até o pedido para reunião com o prefeito para atendimento de uma determinada demanda de algum setor econômico, por exemplo.

O objetivo da gestão do prefeito Ricardo Nunes (MDB-SP) é atender a todos, da melhor maneira possível, tornando a cidade São Paulo mais democrática e inclusiva, bem como um melhor local para se viver. Se hoje sua organização possui alguma demanda com a cidade de São Paulo, traga até a equipe da SERI, hoje o melhor caminho para entradas de demandas externas da sociedade. Esta será ouvida e encaminhada dentro da estrutura municipal e consequentemente atendida. 

Rafael Rubim - Mestre em Políticas Públicas pela Universidade Federal do ABC, especialista em controladoria pela FECAP e bacharel em administração pela Universidade Metodista de São Paulo. Atualmente está como Assessor na Secretaria de Relações Institucionais do município de São Paulo.

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