Em países como o Brasil, que ainda não alcançaram a maturidade institucional, e onde público e privado às vezes se confundem, a aplicação de conceitos como transparência e integridade é, muitas vezes, fluida. A regulamentação de atividades como a de relações institucionais e governamentais (ou lobby) torna-se, para muitos, necessária, desde que as regras sejam legítimas, passíveis de serem cumpridas e fiscalizadas. Desta forma, deixa de ser um empecilho, uma burocracia, e passa a ser, além de um instrumento de proteção, uma ferramenta de desenvolvimento do processo.
Para construir um ambiente favorável ao desenrolar das relações governamentais, o primeiro passo consiste em definir conceitos como transparência, integridade e compliance. De acordo com Ágatha Camargo Paraventi, professora da Faculdade Cásper Líbero, transparência indica intenção e prática de entregar à sociedade informações sobre formas de atuação de uma organização que permitam a avaliação das ações desta. “Em relações governamentais, a transparência está voltada a permitir que os diversos públicos compreendam os objetivos, as iniciativas e a forma como essas relações são construídas. Já integridade está relacionado à prática da ética, aos comportamentos das pessoas e das organizações e o compliance ao controle de riscos legais e regulatórios. Todos esses conceitos estão dentro de um sistema de governança que tem o objetivo de proteger o valor de longo prazo das organizações, associado à mitigação de riscos que envolvem as relações da organização com as diversas partes interessadas. Isso inclui também equidade, sustentabilidade e accountability”.
Paula Chies Schommer, professora de administração pública da Universidade do Estado de Santa Catarina, acredita que a transparência de uma organização pode ser definida por sua capacidade de revelar, publicamente, os fatos associados a seu desempenho, acertos e erros. “Espera-se que qualquer agente público ou organização pública seja transparente em relação a dados, fatos e critérios de decisão. Cabe também responder a qualquer pergunta e demanda por informação do público”, explica. “Quanto à integridade e compliance, às vezes são usados no setor público como sinônimos, em outras compliance é considerado um componente da integridade. Ambos os conceitos remetem à expectativa de que as decisões e ações de agentes públicos e privados sejam pautadas pela ética, pela responsabilidade no cumprimento de normativas legais que se aplicam a cada tipo de atividade. Já a ideia de accountability pode ser entendida como um sistema de respostas a expectativas, de controle sobre o exercício do poder e como mecanismo de responsabilização por atos e omissões”.
Na última década, com a edição da Lei Anticorrupção (Lei 12.846/13) e, agora, com a Nova Lei de Licitações (Lei n. 14.133/21), a cobrança chegou às instituições privadas que se relacionam com o poder público. Segundo Edmar Camata, presidente do Conaci (Conselho Nacional dos Órgãos de Controle Interno dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios das Capitais), os Programas de Integridade passam a ser valorizados, seja para a redução de penalidades da Lei Anticorrupção, seja para grandes contratações com o poder público. “Nesse novo cenário, a punição por comportamentos não íntegros chega às empresas, com penas pesadas, que podem chegar a 20% do faturamento anual. Outro ponto relevante é a responsabilidade objetiva e a autoaplicação das penalidades pela própria administração. Isso requer de qualquer entidade privada que se relacione com o poder público um investimento necessário em integridade das culturas corporativas. O tom deve vir do topo, da alta gestão. E é necessário que, muito além de serem comunicados, os colaboradores assumam uma nova cultura”.
Guilherme France, advogado e pesquisador de direitos humanos e anticorrupção, especialista em organizações e normas internacionais e gerente do Centro de Conhecimento Anticorrupção da Transparência Internacional, ressalta que os conceitos devem considerar os riscos específicos das atividades envolvidas. “Historicamente ficou claro que as atividades de lobby e relgov estão sujeitas a riscos de corrupção, como o pagamento de propina e outras vantagens indevidas que podem ser concedidas a agentes públicos, além de conflitos de interesse. Por isso, se tornam necessárias medidas de transparência e integridade, justamente para diminuir esses riscos. Quando falamos de transparência estamos tratando de entender quais relações e interesses estão sendo fornecidos pelo poder público. Integridade e adoção de medidas adequadas reduziriam esses riscos de corrupção e permitiriam que as atividades estivessem alinhadas ao máximo aos princípios da organização”.
Embora haja semelhanças quanto aos meios no setor privado e no setor público e normativas que se aplicam a ambos, há diferenças sobretudo em relação aos públicos envolvidos. “No setor público, é esperado que todas as pessoas interessadas ou afetadas pelas organizações públicas participem, de modo direto ou via representantes, da definição de propósitos, valores, regras e procedimentos a guiar a ação dos agentes públicos. Os canais e processos para fazê-lo, portanto, são mais amplos e mais abertos”, pontua Paula Schommer. “Esse envolvimento das partes interessadas também pode acontecer no setor privado. No entanto, na área pública, além de reduzir riscos e melhorar desempenho, o envolvimento dos públicos interessados e usuários é necessário para que seu poder e recursos sejam usados de maneira legítima”.
Carlos Petiz, gerente de Integridade e Compliance na Controladoria-Geral do Estado de Santa Catarina, coordenador do Fórum de Integridade das Empresas Estatais de Santa Catarina e auditor-líder em Sistemas de Gestão de Compliance (ISO 37.301) e Antissuborno (ISO 37.001) destaca que, no caso do conceito de integridade, existe uma diferença fundamental. “Na esfera pública refere-se ao alinhamento e à adesão a normas, valores e princípios éticos compartilhados para defender e priorizar o interesse público sobre os interesses privados, para utilizarmos a definição da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Já o IBGC (Instituto Brasileiro de Governança Corporativa), que coloca a integridade como um dos princípios da governança corporativa, traz um conceito muito mais preocupado com a conexão entre discurso e ação, e o cuidado da organização com suas partes interessadas, com a sociedade em geral e com o meio ambiente. Isso acaba se refletindo nos demais conceitos, de transparência e compliance, pois o foco de qualquer ação no setor público deve ter, como prioridade, o interesse público”.
Camata realça que as diferenças existem na aplicação dos conceitos, em especial quando, na área pública, se encontram exigências específicas em virtude dos princípios constitucionais e do regime administrativo público. “De toda forma, estamos falando dos mesmos conceitos, que se aproximaram consideravelmente nos últimos anos, em especial por um maior conhecimento, na administração pública, sobre questões como compliance, frequentemente relacionadas à prestação de contas ao público e ao cumprimento de normas que garantem a integridade do governo. Já no setor privado, muitas vezes é focado em aderir a regulamentos específicos do mercado em que a empresa atua, assim como evitar práticas anticompetitivas e assegurar que as empresas operem dentro da lei. A transparência pode ser mais limitada, dependendo das exigências regulatórias e dos interesses comerciais”.
Os conceitos aplicados no Brasil são similares aos utilizados no exterior – o distanciamento está na raiz cultural de cada sociedade. “Não existem tantas diferenças, até porque o compliance, como o próprio nome deixa claro, foi um conceito trazido de fora. O que existe são diferenças culturais muito expressivas entre diversos países. Alguns exemplos são bem conhecidos, como quem viaja para a Europa e fica surpreso de que não há uma fiscalização rígida se você comprou ou não o ticket do transporte público. Para eles é uma questão cultural, afinal, quem se sujeitaria a quebrar sua integridade e prejudicar uma coletividade por um valor tão ínfimo? É o reflexo de uma construção cultural que levou gerações”, comenta Carlos Petiz.
O presidente do Conaci afirma que transparência e compliance no setor público têm avançado em nosso país, especialmente após a promulgação da Lei de Acesso à Informação (LAI) e a Lei Anticorrupção, mas considera que desafios como a corrupção ainda persistem. “Em geral, o Brasil tem caminhado rumo a padrões de integridade e exigências na área pública a partir de grandes escândalos ou a partir de exigências de organismos internacionais, a exemplo da OCDE. Nesse sentido, a própria Lei Anticorrupção e a Lei de Acesso à Informação tiveram inspiração externa. Em países como a Suécia, a transparência governamental é muitas vezes mais robusta devido a uma cultura de prestação de contas mais enraizada e a um sistema de controle interno mais eficiente. A maturidade do eleitor e o que ele exige daqueles que gerenciam recursos públicos também é consideravelmente mais elevada”.
Para Guilherme France, países onde existe regulamentação do lobby, como os integrantes da União Europeia, Estados Unidos e Chile exibem um nível maior de transparência. “Não tenho dúvidas de que a regulamentação é importante”, salienta. “A autorregulamentação não tem avançado de forma adequada e me parece que é necessária uma regulação estatal. Existe um certo conservadorismo ou até receio por parte das empresas de que regras dificultarão o livre desempenho de suas atividades. Até existem preocupações legítimas em relação a esse processo quanto a uma possível burocratização, principalmente entre empresas pequenas. No entanto, grandes empresas talvez tenham dúvidas sobre permitir que a sociedade conheça os meandros da representação”.
Carlos Petiz considera que o principal erro é ver o compliance como um empecilho, uma burocracia, quando, na verdade, busca proteger tanto a empresa quanto seus profissionais. “Quando o compliance estabelece uma política de relacionamento com determinados stakeholders, como o oferecimento de brindes, o objetivo principal é a prevenção. Um bom compliance officer terá capacidade de entender a demanda do setor de relgov e orientá-lo de forma que possa atuar e cumprir seus objetivos estratégicos, mas sem prejudicar a empresa”.
Para Ágatha Paraventi, os maiores desafios na atividade de relações governamentais não estão na ausência de instrumentos legais. “É claro que a regulamentação da atividade, em ampla discussão há anos em nosso país, trará muitos ganhos de transparência. As principais dificuldades estão relacionadas à aplicação dos princípios de integridade nas interações público e privada e na representação de interesses. Os conflitos surgem e vão além das políticas de relações institucionais, de registrar, guardar evidências e dar transparência às atividades de representação. Envolvem diversas formas de contato e interação entre agentes públicos e privados. É o caso de organizações com grande influência e poder econômico em uma região que, na aplicação de responsabilidade corporativa na comunidade, colaboram para solucionar serviços públicos insuficientes e acabam tendo privilégios concedidos pelo poder público”.
Edmar Camata concorda. Segundo ele, mesmo com legislações avançadas, a falta de aplicação eficaz e o enfraquecimento das instituições de controle podem comprometer a integridade. “No Brasil, começamos há pouco a discussão sobre a efetividade dos Programas de Integridade, algo que já era debatido em países como os Estados Unidos na década de 1990. Claro que escândalos de corrupção que envolvem altos cargos públicos, onde a transparência foi comprometida e os mecanismos de controle falharam, ainda são comuns, mas isso também ocorre no privado. O caso das Americanas deixou claro que, quando o assunto é controle, a zona de conforto não deve ser uma opção. É importante, portanto, que a cultura organizacional apoie e priorize práticas de transparência e integridade, não minimizando a importância de investigações internas ou auditorias”.
A professora de administração pública da Universidade do Estado de Santa Catarina diz que o importante é buscar o contínuo aperfeiçoamento da transparência e da integridade do compliance. “Não basta desenhar uma regra ou um programa em certo momento e seguir fazendo o mesmo para sempre. Cabe aprender com erros e acertos, testar novos métodos e tecnologia, incorporar as aprendizagens e dar continuidade aos esforços para melhorar o desempenho e atender às necessidades dos diferentes públicos, sobretudo os que mais precisam do serviço público. Ser eficiente e demonstrar que cumpre as regras vigentes não é suficiente. É necessário, também, aprimorar essas regras e o desempenho, de modo que ajudem a melhorar as condições de vida das pessoas que trabalham na organização pública, usam seus serviços ou com ela se relacionam”.
Uma melhora do cenário passaria por um aumento do controle, por meio de regras mais rigorosas, ou pela disseminação dos conceitos de transparência e integridade? “Uma legislação mais rigorosa pode fornecer uma base sólida para práticas de compliance, mas deve ser acompanhada por mecanismos eficazes de fiscalização. Em alguns setores, a autorregulação pode ser eficaz, especialmente se for apoiada por uma cultura forte de ética e integridade. No entanto, pode não ser suficiente em contextos em que há baixa confiança ou histórico de má conduta”, diz Edmar Camata. “Fortalecer as instituições de controle interno, como tribunais de contas e corregedorias, é essencial, assim como promover a educação contínua sobre a importância de práticas éticas e de compliance para servidores públicos e profissionais do setor privado”.
Já Carlos Petiz não entende que a resposta esteja só na regulamentação. Para ele, a experiência de outros países mostra que o excesso de regras ou exigências, como cadastros ou relatórios, acaba afastando os profissionais da regulação, mas não da atividade. “E no Brasil não seria diferente, provavelmente até pior, devido à nossa tendência para a informalidade. Por outro lado, nosso país ainda não tem maturidade institucional para deixar tudo a cargo da autorregulação. Nesse caso, creio que os bons profissionais acabariam pagando pelos erros dos mal-intencionados”.
O caminho, acredita Petiz, está na disseminação do conceito de integridade. A transformação pela mudança de cultura é a única que se prova efetiva no longo prazo. “No mundo ideal, não seria necessário haver controles. Mas, lidando com a realidade das estruturas sociais – empresas, governos, entidades associativas – é preciso propor controles que sejam assertivos. É comum pensarmos que isso é impossível, que nosso “jeitinho” não tem cura, mas existem exemplos bem-sucedidos. Todos lembramos que antigamente era permitido e socialmente aceito fumar em locais fechados, o que hoje é uma coisa impensável. Trata-se de um exemplo simples de uma mudança cultural que se efetivou em menos de uma geração”.
Paula Schommer também aposta em difundir e aprimorar conceitos e práticas de transparência e integridade, estimular e capacitar agentes públicos e cidadãos para demandá-las, construí-las colaborativamente e envolver pessoas e conhecimentos diversos para que as questões de compliance, por exemplo, não sejam algo muito técnico, restritas a profissionais de áreas como direito e contabilidade. “Quanto a intensificar controle, é preciso cuidado. Não cabe aumentar os que partem de pressupostos de desconfiança ou que engessem processos. Os sistemas de controle, sejam eles de caráter político, administrativo, social, judicial, parlamentar ou de desempenho, precisam estar a serviço da democracia e da solução dos problemas públicos. Não são um fim em si. Precisam ser razoáveis e submetidos aos critérios e processos democráticos”, afirma.
Nos últimos anos, os índices de transparência e obediência às regras de compliance vêm dando sinais de melhora. De acordo com Carlos Petiz, há evolução constante. “Pesquisa recente da KPMG aponta que 82% dos respondentes têm programas de ética e compliance implementados de forma eficiente em suas organizações, e somente 3% informaram que não existe área de compliance. Alguns setores, mais regulados, são naturalmente mais afetados pela necessidade de cumprir regras e exigências legais, como o financeiro e de concessões, por exemplo. O fenômeno da operação Lava-Jato impulsionou o tema no Brasil, com um empurrão mais recente a partir do crescimento da preocupação das empresas com o ESG, que está muito próximo do compliance, pois os riscos reputacionais passaram a ser vistos também como riscos de mercado”.
O presidente do Conaci enfatiza que, nos últimos anos, os índices de transparência e conformidade com regras de compliance têm mostrado crescimento, especialmente com a adoção de novas tecnologias e a pressão social por mais transparência. “No entanto, esses avanços podem variar bastante entre diferentes órgãos e regiões. Iniciativas como o Portal da Transparência no Brasil têm contribuído para avanços, mas ainda há desafios significativos, principalmente em áreas mais vulneráveis à corrupção”.
Paraventi acentua que uma grande contribuição foi a lei 12.846/2013, que reduziu, pelas penalidades, o apetite ao risco de uma organização para praticar corrupção. “Os estudos de acompanhamento da maturidade dos programas de compliance em nosso país, nos últimos 10 anos, são impressionantes. Das organizações de grande porte, pelo menos 85% têm a função de compliance estruturada. Mas o caminho tem sido o de discussão e promoção de conhecimento sobre como surgem e como os conflitos de interesse afetam os objetivos das organizações, dos seus diversos públicos e da sociedade como um todo. A pressão contra a corrupção só acontece quando ela deixa de ser normalizada socialmente, quando as pessoas avaliam que as consequências não justificam os benefícios de curto prazo e passam a considerar a conduta intolerável”. Ela acredita que o país tem um desafio cultural, exemplificado pela convenção social de reciprocidade e troca, por meio da qual tendemos a retribuir cooperações, mesmo que com papéis e deveres em conflito com essa ação. “Essa reciprocidade está presente nas interações do dia a dia e nas grandes negociações, é um fenômeno relacional relevante a ser estudado em um país que cultua a “cultura da amizade”, na qual, como diz o ditado popular, de autoria desconhecida, “para amigos tudo, para inimigos, a lei”.
Guilherme France constata que há uma redução da aplicação da lei em função de irregularidades, o que pode estar produzindo um sinal de que se tornou menos custoso não cumprir a regulamentação. “Sem dúvida, boa parte das pesquisas realizadas por diversos organismos dão conta de que o Brasil se encontra em posição desvantajosa quando comparado com outros países da América Latina”. Ele afirma que é preciso avançar na conscientização da sociedade de que a maioria das empresas utiliza argumentos legítimos nas discussões que envolvem defesa de interesses. “Tenho a impressão de que ainda há receio por parte das empresas de assumir esses interesses e que as pessoas ainda os veem como obscuros. Por isso, a importância de que sejam apresentados com argumentos embasados cientificamente e defendidos de forma pública. A sociedade precisa entender esse processo como legítimo e importante para o processo democrático”.